sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Argumento de autoridade

Autor: Desidério Murcho

Universidade Federal de Ouro Preto
Aos argumentos baseados na opinião de um ou mais especialistas chama-se argumentos de autoridade. Os argumentos de autoridade têm geralmente a seguinte forma lógica (ou são a ela redutíveis): “disse que P; logo, P”. Por exemplo: “Aristóteles disse que a Terra é plana; logo, a Terra é plana”. Um argumento de autoridade pode ainda ter a seguinte forma lógica: “Todas as autoridades dizem que P; logo, P”.
A maior parte do conhecimento que temos de física, matemática, história, economia ou qualquer outra área baseia-se no trabalho e opinião de especialistas. Os argumentos de autoridade resultam desta necessidade de nos apoiarmos nos especialistas. Por isso, uma das regras a que um argumento de autoridade tem de obedecer para poder ser bom é esta:
1. O especialista (a autoridade) invocado tem de ser um bom especialista da matéria em causa.
Esta é a regra violada no seguinte argumento de autoridade: “Einstein disse que a maneira de acabar com a guerra era ter um governo mundial; logo, a maneira de acabar com a guerra é ter um governo mundial”. Dado que Einstein era um especialista em física, mas não em filosofia política, este argumento é mau.
Contudo, apesar de Marx ser um especialista em filosofia política, o seguinte argumento de autoridade também é mau: “Marx disse que a maneira de acabar com a guerra era ter um governo mundial; logo, a maneira de acabar com a guerra é ter um governo mundial”. Neste caso, é mau porque viola outra regra:
2. Os especialistas da matéria em causa não podem discordar significativamente entre si quanto à afirmação em causa.
Dado que os especialistas em filosofia política discordam entre si quanto à afirmação em causa, o argumento é mau. É por causa desta regra que quase todos os argumentos de autoridade sobre questões substanciais de filosofia são maus: porque os filósofos discordam entre si sobre questões substanciais. Poucas são as afirmações filosóficas substanciais que a generalidade dos filósofos aceitam unanimemente e por isso não se pode usar a opinião de um filósofo para provar seja o que for de substancial em filosofia. Fazer isso é falacioso.
Os seguintes argumentos contra Galileu são igualmente maus: “Aristóteles disse que a Terra está imóvel; logo, a Terra está imóvel” e “A Bíblia diz que a Terra está imóvel; logo, a Terra está imóvel”. O primeiro é mau porque nem todos os grandes especialistas da altura em astronomia, entre os quais se contava o próprio Galileu, concordavam com Aristóteles; o argumento viola a regra 2. O segundo é mau porque os autores da Bíblia não eram especialistas em astronomia; o argumento viola a regra 1.
Considere-se o seguinte argumento: “Todos os especialistas afirmam que a teoria de Einstein está errada; logo, a teoria de Einstein está errada”. Qualquer pessoa poderia ter usado este argumento quando Einstein publicou pela primeira vez a teoria da relatividade. Este argumento é mau porque é derrotado pela força dos argumentos independentes que sustentam a teoria de Einstein. A regra violada é a seguinte:
3. Só podemos aceitar a conclusão de um argumento de autoridade se não existirem outros argumentos mais fortes ou de força igual a favor da conclusão contrária.
A regra 2 é redundante relativamente a 3. Não se aceita um argumento de autoridade baseado num filósofo quando há outros argumentos de igual força, baseados noutro filósofo, a favor da conclusão contrária. Mas 3 abrange o tipo de erro presente no último argumento sobre Einstein, ao passo que 2 não o faz. No caso do argumento de Einstein, o erro consiste no facto de o argumento de autoridade baseado em todos os especialistas em física ser mais fraco do que os próprios argumentos físicos e matemáticos que sustentam a teoria de Einstein.
Considere-se o seguinte argumento: “O psiquiatra X defende que toda a gente deve ir ao psiquiatra pelo menos três vezes por ano; logo, toda a gente deve ir ao psiquiatra pelo menos três vezes por ano”. Admita-se que todos os especialistas em psiquiatria concordam com X, que é um grande especialista na área. A regra 3 diz-nos que este argumento é fraco porque há outros argumentos que colocam em causa a conclusão: dados estatísticos, por exemplo, que mostram que a percentagem de curas efectuadas pelos psiquiatras é diminuta, o que sugere que esta prática médica é muito diferente de outras práticas cujo sucesso real é muitíssimo superior. Além disso, este argumento viola outra regra:
4. Os especialistas da matéria em causa, no seu todo, não podem ter fortes interesses pessoais na afirmação em causa.
Quando Einstein afirma que a teoria da relatividade é verdadeira, tem certamente muito interesse pessoal na sua teoria. Mas os outros físicos não têm qualquer interesse em que a teoria da relatividade seja verdadeira; pelo contrário, até têm interesse em demonstrar que é falsa, pois nesse caso seriam eles a ficar famosos e não Einstein. Mas nenhum psiquiatra tem interesse em refutar o que diz X. E, por isso, a sua afirmação não tem qualquer valor — porque é a comunidade dos especialistas, no seu todo, que tem tudo a ganhar e nada a perder em concordar com X.
Os argumentos de autoridade são vácuos ou despropositados quando invocam correctamente um especialista para sustentar uma conclusão que pode ser provada por outros meios mais directos. Por exemplo: “Frege afirma que omodus ponens é válido; logo, o modus ponens é válido”. Dado que a validade do modus ponens pode ser verificada por outros meios mais directos (nomeadamente através de um inspector de circunstâncias), este argumento é vácuo ou despropositado. Os argumentos de autoridade devem unicamente ser usados quando não se pode usar outras formas argumentativas mais directas.
Usa-se muitas vezes a expressão “argumento de autoridade” como sinónimo de “mau argumento de autoridade”. Todavia, nem todos os argumentos de autoridade são maus; o progresso do conhecimento é impossível sem recorrer a argumentos de autoridade; e pode-se distinguir com alguma proficiência os bons dos maus argumentos de autoridade, atendendo às regras dadas.
Desidério Murcho
Extraído de Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos, segunda edição, org. por João Branquinho, Desidério Murcho e Nelson Golçalves Gomes (São Paulo: Martins Fontes, 2006)

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