O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA E A VIOLÊNCIA POLICIAL
CARLOS ALBERTO DA SILVA GALDINO
Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí
Assistente de Promotoria de Justiça da Capital
Pós-Graduando em Direito Penal e Direito Processual Penal pela EPAMPSC
1. Noções Introdutórias – 2. O Princípio da Dignidade Humana – 3. O Princípio da Soberania Estatal –
1. NOÇÕES INTRODUTÓRIAS
Questão hodierna que serve de tema a assíduos debates é a preservação do instituto da dignidade humana em face de atos desvirtuados do poder como ele é concebido atualmente. Mesmo que durante todo o processo histórico-evolutivo se tenha adquirido fundamentos e princípios que estruturaram a atual sociedade ocidental na qual vivemos, consubstanciada na preservação da integridade humana tanto física quanto moral, não se pode olvidar o fato de que alguns órgãos estatais aplicam o poder de forma demasiada e distorcida, longe dos fins definidos pela atual Carta Política de 1988. Destarte, o princípio da Dignidade Humana, insculpido no artigo 1°, inciso III, da Constituição Federal é fundamento de nossa República, não podendo de forma alguma ser aviltada por atos excessivos de agentes públicos, com o emprego da violência de forma atentatória às bases estatais, ferindo a atual concepção de justiça, desestruturando sobremaneira a construção de um verdadeiro estado democrático de direito.
2. O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA
Em traços preliminares, cumpre salientar o sentido etimológico das expressões dignidade e pessoa. Este último vem do latim persona, significando, em um sentido comum, o ser humano em suas relações com o mundo ou consigo mesmo. Em sentido mais amplo, concebe um sujeito de relações (ABBAGNANO, 1998, p. 71). Por outra via, porém na mesma senda, Acquaviva (2001, p. 531) define pessoa como “o ente ao qual a Lei atribui direitos e deveres. [...] a pessoa de existência visível.” Ainda quanto ao conceito, Ferreira (2004, p. 1550) assevera: “[...] pessoa é o ser humano considerado singularmente, como sujeito de direitos.”
Já a palavra dignidade vem do latim dignitas, e em uma linguagem coloquial, possui amiúde sentido de honradez e honestidade. Ferreira (2004, p. 682) define o comentado termo como sendo “cargo e antigo tratamento honorífico; função, honraria, título ou cargo que confere ao indivíduo uma posição graduada; autoridade moral; honestidade, respeitabilidade; decência, decoro; respeito a si mesmo, amor próprio, brio, pundonor.”
A luz da verdade, a dignidade humana é um princípio, como dito, universalmente reconhecido, muito embora existam exceções, porém não há dúvidas quanto ao fato de que “os princípios de uma ciência são proposições básicas, fundamentais, típicas que condicionam todas as estruturações subseqüentes. Princípios, nesse sentido, são alicerces da ciência.” (CRETELLA JÚNIOR apud DI PIETRO, 2004, p. 66).
Ademais, Mello (1996, p. 545) dá seu entendimento pormenorizado definindo o vocábulo princípio como
Mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhe o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, precisamente porque define a lógica e a racionalidade do sistema normativo, conferindo-lhe a tônica que lhe dá o sentido harmônico.
Nestes moldes, na lição de Farias (2000, p. 56) “a pessoa humana é hoje considerada como o mais eminente de todos os valores porque constitui a fonte e a raiz de todos os demais valores.” Destarte, o valor da pessoa humana “é traduzido juridicamente pelo eminente principio fundamental da dignidade da pessoa humana.” (FARIAS, 2000, p. 60, grifo do autor). Tal princípio pode ser analisado sob enfoques distintos, compreendendo que a dignidade da pessoa humana direciona-se ao homem concreto e individual, enquanto que dignidade humana engloba a humanidade em geral, concebida como qualidade comum a todos ou como conjunto que os abrange e os ultrapassa. (MIRANDA, 1991, p. 169).
Já na concepção de Kant, a dignidade se consubstancia na capacidade humana em se submeter às regras oriundas de sua própria capacidade legislativa e de redigir um plano de vida de maneira consciente e ponderada. (RABENHORST, 2001, p. 34).
Há ainda quem suscite o fato da Dignidade da Pessoa Humana não poder ser considerada como algo inerente à natureza do homem de forma exclusiva, logo que a dignidade possui uma acepção cultural, constituindo produto do labor das diversas gerações da humanidade, motivo pelo qual a dimensão cultural e a dimensão natural da dignidade da pessoa humana se integram e se complementam mutuamente. (SARLET, 2004, p. 115).
Revela-se o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento de importância ímpar, porquanto ecoa sobre todo o ordenamento jurídico e reflete efeitos sobre as outras normas e princípios. A tutela dos demais direitos presume que a dignidade humana tenha sido respeitada. Nesse diapasão, o Estado deve conceder à sociedade condições mínimas para que todos tenham de fato dignidade. (MARTINS, 2005, p. 72).
Atento a tais observações de caráter relevante quanto ao tema ora debatido, Moraes (2003, p. 60) define o princípio em comento:
A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos Direitos Fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. (grifo do autor).
Assim sendo, atos propalados pela entidade estatal que visem ao desrespeito à existência digna, com a conseqüente violação aos limites de poder impostos pelo Direito, que acabem por infringir os Direitos Fundamentais notoriamente reconhecidos, merecem o total repúdio da sociedade em geral, haja vista a total impossibilidade da construção de um verdadeiro Estado democrático de Direito quando o controle estatal faz uso arbitrário do poder. (SARLET, 2004, p. 118).
Destarte, o princípio da dignidade humana é a pilastra-mestra de todo o ordenamento brasileiro. Nenhuma norma poderá ser criada e nenhum ato poderá ser propugnado de modo a infringir tal princípio. Deste modo, sua intangibilidade é pressuposto para a consecução de um Estado democrático mais justo e equânime.
3. O PRINCÍPIO DA SOBERANIA ESTATAL
No contexto mundial contemporâneo, não há sociedade sem Poder reconhecido. Dessa forma, mediante uma análise da conjuntura histórica, é possível constatar que mesmo os grupos sociais mais arcaicos possuíam líderes que comandavam e guiavam o grupo, estabelecendo uma relação de subordinação e respeito.
Destarte, não existem maiores imbróglios para averiguar que a forma política da sociedade é o Estado. Este é formado por uma sociedade permanente de homens que habita um território fixo e determinado e tem um governo independente. Este governo é uma expressão do poder estatal, que é o mais alto em relação aos indivíduos e independente em relação aos demais. (AZAMBUJA, 2000, p. 49).
A este poder próprio do Estado, que apresenta um caráter de evidente supremacia sobre os indivíduos e as sociedades de indivíduos que formam sua população, e, além disso, independente dos demais estados, dá-se o nome de Soberania. (AZAMBUJA, 2000, p. 49).
Nossa Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 por óbvio não passou desapercebida quanto à previsão do princípio em comento, colacionando-o como fundamento do Estado Brasileiro:
Art. 1° - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se
I – a soberania;
[...] (BRASIL, 2004, p. 03).
Em razão do tratamento constitucional do aludido princípio, tal assunto não poderia ficar em segundo plano para os estudiosos do assunto. Portanto, imperioso se faz cotejar o conceito de Caetano (1987 apud MORAES, 2002, p. 50) dada a sua completude:
Um poder político supremo e independente, entendendo-se por poder supremo aquele que não está limitado por nenhum outro na ordem interna e por poder independente aquele que, na sociedade internacional, não tem de acatar regras que não sejam voluntariamente aceitas e está em pé de igualdade com os poderes supremos dos outros povos.
É importante salientar que a soberania não pode ser considerada uma característica essencial do poder do Estado, porquanto existem Estados que não são soberanos, como é o caso dos estados membros de um estado federal. O próprio qualificativo membro afasta a idéia de soberania. Logo, o poder supremo é investido no órgão federal. (MALUF, 1995, p. 29).
Não pairam dúvidas acerca da afirmação de que todo poder emana do povo. Assim asseverou a Carta Política Brasileira de 1988 em seu artigo 1°, parágrafo único (BRASIL, 2004, p. 03), inclusive prevendo no seu artigo 14 as formas de exercício da soberania popular (BRASIL, 2004, p. 19). Neste diapasão, qual seja, do poder soberano ser constituído pela vontade do povo, indispensável colacionar o pensamento de Beccaria (2001, p. 19):
As Leis foram às condições que agruparam os homens, no início independentes e isolados, à superfície da terra. Fatigados de só viver em meio a temores e de encontrar inimigos em toda parte, cansados de uma liberdade cuja incerteza de conservá-la tornava inútil, sacrificaram uma parte dela para usufruir o restante com mais segurança. A soma dessas partes de liberdade, assim sacrificadas ao bem geral, constitui a soberania na nação; e aquele que foi encarregado pelas Leis como depositário dessas liberdades e dos trabalhos da administração foi proclamado o soberano do povo. [...] A reunião de todas essas pequenas parcelas de liberdade constitui o fundamento do Direito de punir. Todo exercício do poder que deste fundamento se afastar constitui abuso e não justiça; é um poder de fato e não de direito; constitui usurpação e jamais poder legítimo. (grifo nosso).
Destarte, “por soberania nacional entendemos a autoridade superior, que sintetiza, politicamente, e segundo os preceitos de Direito, a energia coativa do agregado nacional.” (MALUF, 1995, p. 30).
Concebe-se, portanto, muito embora detenha o Estado o poder soberano e estabeleça uma relação de hierarquia e subordinação, isso só é possível em razão da aquiescência do povo. Nestes moldes, mesmo que o Estado atue no sentido de promover a ordem e paz, seus atos estarão limitados a direitos inexoravelmente reconhecidos e tutelados pelo próprio corpo estatal. Essa é a noção de Estado Democrático de Direito, que detém o poder outorgado pelo povo e que não só respeita como resguarda os direitos inerentes à própria existência do indivíduo.
Antes de avançar aos aspectos fundamentais do tema em comento, faz-se imprescindível conceber seu conceito, que delineia a análise do assunto. Para Silva (1998, p. 739) “segurança, qualquer que seja sua aplicação, insere o sentido de tornar a coisa livre de perigos, livre de incertezas, assegurada de danos ou prejuízos, afastada de todo mal.” Já no entendimento de Silva Junior (2004, p. 02) segurança pode ser definida como:
Conjunto de estratégias de condução do poder nacional, por suas expressões de poder político, econômico, psicossocial e militar que garantam a consecução dos objetivos nacionais permanentes, caracterizados pelas aspirações vitais de conservação, equilíbrio e progresso, e dos objetivos nacionais atuais, concebidos como etapas intermediárias para o alcance dos primeiros.
Em um mesmo processo de cognição, Silva (2001, p. 755) conceitua o termo segurança concebendo suas interpretações de acordo com o enfoque dado pelo intérprete, asseverando:
Na teoria jurídica a palavra segurança assume o sentido geral de garantia, proteção, estabilidade de situação ou pessoa em vários campos, dependente do adjetivo que a qualifica. Segurança Jurídica consiste na garantia de estabilidade e de certeza dos negócios jurídicos, de sorte que as pessoas saibam de antemão que, uma vez envolvidas em determinada relação jurídica, esta se mantém estável, mesmo se modificar a base legal sob a qual se estabeleceu. Segurança Social significa a previsão de vários meios que garantam aos indivíduos e suas famílias condições sociais dignas; tais meios se revelam basicamente como conjunto de direitos sociais. [...] Segurança Nacional refere-se às condições básicas de defesa do Estado. Segurança Pública é a manutenção da ordem pública interna.
Destarte, a segurança pública, como função do ente estatal, somente é possível quando este detém o poder. Mesmo no exercício de atividades lícitas, os homens, pelo simples fato de viverem em comum, têm de respeitar e obedecer a normas legais que devem ser defendidas e aplicadas por um poder permanente, formado por parcelas de liberdade unilateral e singularmente concedida pelos indivíduos de um agrupamento social. De fato, o objetivo, a causa final do poder é manter a ordem, assegurar a defesa e promover o bem estar da sociedade, realizando, enfim, o bem público. (AZAMBUJA, 2000, p. 95).
Em breve escorço, poder-se-ia dizer que a estrutura estatal pode ser caracterizada pela relação sistêmica que a vida do Estado pode conter, envolvendo segurança, ordem, justiça, força, poder e autoridade, pela diferenciação, na teoria e na prática, entre o poder social e a função governamental e ainda pelo Estado realizando a coerção da conduta humana em um contexto organizado, submetido a uma conformação judicial geral. (PASOLD, 1998, p. 31).
Assim sendo, não pairam dúvidas quanto à necessidade do poder público como sustentáculo da segurança pública, haja vista a necessidade do controle das liberdades individuais por um poder político. Diante dessa afirmação, a atual Carta Constitucional Brasileira, como documento legislativo criado por uma assembléia constituinte representativa do povo brasileiro, segundo seu preâmbulo, determina em seu artigo 144 ser a segurança pública um dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, sendo exercida para preservação da ordem pública e para a manutenção da incolumidade e da integridade das pessoas e do patrimônio. (BRASIL, 2004, p. 95). A Constituição do Estado de Santa Catarina, em seu artigo 105 dispõe nos mesmos moldes da Lei Maior Federal.
Ainda no âmbito federal, veio ao mundo jurídico em 18 de fevereiro de 2004 o Decreto n° 4.991, que aprovou a estrutura regimental do Ministério da Justiça e deu outras providências, criando, como órgão colegiado do referido Ministério, o Conselho Nacional de Segurança Pública. Este conselho possui suas atribuições definidas no artigo 37 do aludido Decreto, que assim determina:
Art. 37. Ao Conselho Nacional de Segurança Pública - CONASP compete:
I - formular a Política Nacional de Segurança Pública;
II - estabelecer diretrizes, elaborar normas e articular a coordenação da Política Nacional de Segurança Pública;
III - estimular a modernização de estruturas organizacionais das polícias civil e militar dos Estados e do Distrito Federal;
IV - desenvolver estudos e ações visando a aumentar a eficiência dos serviços policiais, promovendo o intercâmbio de experiências;
V - estudar, analisar e sugerir alterações na legislação pertinente. (BRASIL, 2005b, p. 10).
Adiante, de acordo com a análise do título V, capítulo III da Carta Magna de 1988, que trata da segurança pública como elemento da defesa do Estado e das instituições democráticas, verifica-se indubitavelmente a estruturação por parte do legislador constituinte da organização policial brasileira, com disposições precisas de função e competência. Para tanto, surge como órgãos de defesa a polícia civil, polícia militar, polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária federal e o corpo de bombeiros (BRASIL, 2004, p. 96).
São de âmbito federal a polícia federal propriamente dita, a polícia ferroviária federal e a polícia rodoviária federal. Estão no âmbito estadual a polícia militar, a polícia civil e o corpo de bombeiros. (SILVA, 2001, p. 758).
Estabelecendo a Carta política de 1988 o formato policial a ser instituído internamente em todas as esferas políticas, não poderia deixar de prever a disciplina e organização dos órgãos responsáveis pela segurança dos municípios. O artigo 144, §8º da Constituição Federal concedeu aos municípios, por meio de sua competência legislativa interna, dispor acerca da formação de guardas municipais destinadas a proteção de seus bens, serviços e instalações, sem reconhecer, contudo, a possibilidade de exercício de polícia ostensiva ou judiciária. (MORAES, 2002, p. 654).
Neste sentido cognitivo, percebe-se que o Estado, entidade delegada do poder do povo, possui o dever de promover o bem estar social, concretizando os anseios humanos através de sua atividade pública, correspondendo com as pretensões do corpo social, mas, especificamente, com o controle social e com a prevenção dos atos ilícitos.
5. O CONTROLE SOCIAL E A VIOLÊNCIA
Diante do quadro hodierno das sociedades contemporâneas, observa-se claramente a importância da violência dentro do contexto social, realidade esta que se revela dramática e intolerável. Contudo, diante da situação fática atual, é possível que o corpo social da maioria dos Estados soberanos estejam vivendo um processo de vulgarização da violência, com sua conseqüente expansão sem regras e previsões, com origem nas instituições públicas, no mercado, nos próprios indivíduos. Dessarte, a violência criminal passa a ter papel relevante dentro do quadro político de um Estado, uma vez que é nesta em que se estrutura a dominação política e o controle social.
Este controle, como já salientado, é exercido por um ente político, dotado de poder e que, com caráter de supremacia, estabelece a ordem e a paz. Assim sendo, caracteriza-se como objetivo do poder, a manutenção da ordem, assegurando a defesa e a promoção do bem estar da sociedade, realizando, assim, o bem público. (AZAMBUJA, 2000, p. 95).
Nesta mesma linha, mesmo no exercício de atividades lícitas e de direitos inegáveis, os homens, pelo simples fato de viverem em comum, devem obedecer a normas legais que devem ser definidas e aplicadas por um poder permanente. (AZAMBUJA, 2000, p. 95).
Assim, cumpre trazer a baila o estudo de Veronese (1999, p. 12) no que diz respeito ao fundamento do Estado como exeqüente do controle social, especificamente do controle da violência na sociedade:
As idéias de Estado e violência em muito estão relacionadas. Hobbes sustenta que é com surgimento institucional do Estado que a humanidade pôs fim àquele modelo de Estado a que convencionou chamar de Estado de natureza, qual seja aquele em que o homem é o próprio lobo do homem. Com o Leviatã, obra de 1615, Hobbes explica a passagem do homem natural para o homem artificial, ao Estado Leviatã. Buscando abandonar esta condição de absoluta insegurança, é que os homens resolveram conceder uma parcela de sua liberdade ao Estado, a bem de que este lhes garantisse paz e segurança. Estava instituído, assim, o que Rousseau mais tarde chamou de ‘Contrato Social’, firmado entre os cidadãos, e a partir desse contexto, é que o Estado foi constituído.
Portanto, coube ao Estado o encargo de organizar os indivíduos em sociedade, estabelecendo regras de convivência, e principalmente fixando sanções àqueles cujo comportamento resultasse em violação do contrato. É exatamente este poder de coerção, que impõe aos homens sujeição ao Estado e às regras por ele estabelecidas. (VERONESE, 1999, p. 13).
Embora a exposição acima tenha cunho contratualista e origem contemporânea, é certo que o Estado atualmente, para executar seus fins, assume determinadas competências, com o objetivo de promover o bem comum:
A quase totalidade dos escritores confunde, infelizmente, os conceitos de fim e competência do Estado [...]. Ora, o que varia sem cessar não são os fins do Estado, é sim a espécie de atividade, os meios empregados, os objetos da ação do Estado para atingir seus fins. A atividade do Estado no que diz respeito aos assuntos e as pessoas sobre os quais ele exerce o seu poder, é a competência do Estado. O fim do Estado é o objetivo de que ele visa atingir quando exerce o poder. Esse objetivo, é invariável, é o bem público. A competência do Estado é variável, conforme a época e o lugar. Assim, o Estado pode chamar a si certos serviços ou permitir que os particulares os executem; mas tanto quando amplia como quando restringe a própria competência, o Estado visa realizar o bem público. (AZAMBUJA, 2000, p. 123).
Tal preceito mostra-se verdadeiro, haja vista o exposto da redação do preâmbulo da Carta Política Brasileira vigente, que afirma que a instituição do Estado democrático do Brasil destina-se a assegurar o pleno exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, a igualdade, a justiça. Indubitavelmente, em síntese, todas estas competências arroladas se resumem a um único fim, o bem público. (BRASIL, 2004, p. 01).
Corroborando a idéia cotejada, bem como reduzindo o espectro de abrangência no que concerne ao controle social exercido pelo Estado, especificamente no que diz respeito ao controle da violência existente no meio social, é certa que o Estado resguardou para si tal competência. Vê-se com mais clareza esta afirmação quando se constata que a Constituição de 1988 determina expressamente que lesões ou ameaças a direitos não serão excluídos da apreciação do Poder Judiciário (art. 5°, XXXV), bem como não há crime nem pena sem prévia cominação legal (art. 5°, XXXIX), e que não haverá privação dos bens e da liberdade sem o devido processo legal (art. 5°, LIV). (BRASIL, 2004, p. 09).
Ainda é possível observar que o Estado guardou para si a competência exclusiva para legislar sobre Direito Penal, esta específica da União, e ainda há competência legislativa concorrente para deliberar sobre Direito Penitenciário, na forma dos artigos 22, I e 24, I, respectivamente, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. (BRASIL, 2004, p. 28-32).
Neste caminhar, constata-se que as transmudações ocorridas na história, a partir do abandono do modelo absolutista até a edificação de um modelo considerado democrático e de Direito, consagrou-se o Estado como detentor do jus puniendi, ou do direito de punir, ficando vedado a qualquer cidadão o exercício da justiça privada, ou seja, somente o Estado pode repreender e somente ele pode aplicar as penas. (VERONESE, 1999, p. 12).
Neste diapasão, sendo o Estado detentor único do direito de perseguir e punir cabe a ele combater o crime, que não é um tumor ou uma epidemia, mas um doloroso problema interpessoal e comunitário. É na verdade:
Uma realidade próxima, cotidiana, quase doméstica: um problema da comunidade, que nasce na comunidade e que deve ser resolvido pela comunidade. Um problema social, em suma, com tudo que tal caracterização implica função de seu diagnóstico e tratamento. (GOMES; MOLINA, 2000, p. 331).
Desse modo, sendo o Estado a única entidade dotada de poder soberano, exclusivo titular do direito de punir, concebe-se que tal prerrogativa é genérica e impessoal, uma vez que não se dirige especificamente contra uma ou outra pessoa previamente determinada, mas destina-se à coletividade como um todo. Seria, na verdade, ilógico e de todo inconstitucional a elaboração de uma regra, excepcional e particular, que autorize a punição de específica pessoa. Desta forma, há na verdade um poder abstrato de punir qualquer um que venha a praticar fato definido como infração penal. A partir do momento em que é cometida a infração, este poder, até então genérico, materializa-se, transmudando-se em uma pretensão individualizada, dirigida, especificamente contra o transgressor. (CAPEZ, 2003, p. 02).
Entretanto, faz-se imprescindível ressalvar que o Direito, especificamente no âmbito penal, tem por finalidade não apenas responsabilizar o transgressor da norma, mas também conter ou reduzir a violência estatal, ou seja, o Estado quando intervém para impor o castigo também exerce violência. Desta forma, o Direito Penal existe para disciplinar essa violência, para mantê-la dentro de determinados limites. É por tal fundamento que se argumenta que o Direito Penal objetivo constitui óbice para o direito de punir do Estado, isto é, o Estado tem o direito de punir o infrator da norma penal, no entanto, deve fazê-lo dentro dos limites estabelecidos pela Constituição e pelo Direito Penal objetivo, ou seja, pelo conjunto de regras que disciplinam esse poder de punir. (GOMES, 2004, p. 21).
Incontroverso, nestes ditames, que na atualidade:
Os limites do ius puniendi derivam da própria Constituição. Se o poder de castigar emana da Carta Magna e se realiza mediante normas e decisões judiciais, infere-se que tanto o legislador como os juizes (bem como o intérprete) acham-se vinculados aos princípios, regras e valores constitucionais (liberdade, igualdade, pluralismo, justiça, dignidade da pessoa, racionalidade, proporcionalidade etc.), que já não se apresentam como limites externos, senão como princípios reitores da Política Criminal e do Direito Penal. (GOMES, 2004, p. 33).
Irrefragável neste entendimento que a pena deve ser compreendida como medida de defesa social, como reação necessária e indispensável contra o infrator. Não restam dúvidas que a luta ou reação social contra o delito é imperativo de conservação e sobrevivência da sociedade que, paralelamente, tem o dever de auxiliar o delinqüente no fito de sua reabilitação. (FERNANDES; FERNANDES, 1995, p. 312).
De tal modo, não há como negar que a prevenção é a orientação lógica a ser adotada quando se procura evitar o acontecimento delinqüencial, até porque o controle social exercido pelo Estado não se resume à materialização do seu direito de punir, mas inclui-se entre suas competências medidas preventivas pré-delinqüenciais. Destarte, compreendendo toda uma gama de relações sociais, o ato criminoso é muito mais do que mero acontecimento ilícito de um indivíduo, porquanto, se cuidando deste em suas relações sociais, evidente que se estará colaborando para prevenir o delito. (FERNANDES; FERNANDES, 1995, p. 293).
É certo que será absolutamente inútil retirar os indivíduos um após o outro das situações que produzem criminosos, sem, contudo impedir que essas situações se perdurem no tempo. De fato, é preferível evitar o acontecimento do evento criminoso do que puni-lo efetivamente, antecedendo tal ideal na necessidade indelével de se promover à educação aos homens, a fim de não ter de responsabilizá-los penalmente no futuro. (FERNANDES; FERNANDES, 1995, p. 293).
Não restam dúvidas que, embora medidas preventivas pré-delitivas sejam de fato a ação mais eficiente, visando coibir a prática futura da infração, é certo que nem sempre o Estado, incumbido de promover o controle social, conseguirá impedir a materialização do crime. Assim:
Além disso, é imprescindível que a instrumentação profilático-coibitória-criminal (Polícia, Ministério Público, Poder Judiciário e Sistema Penitenciário) sejam um esteio da ordem, jamais deixando de respeitar o indivíduo e seus sagrados direitos. É indispensável que tal aparato administrativo possua educação jurídica e que todos os seus passos sejam guiados pelo Direito, pela Moral e pela Justiça. Não sendo assim, esse mecanismo transformar-se-á numa nosologia da vida comunitária, caindo suas ações no domínio da patologia social. (FERNANDES; FERNANDES, 1995, p. 297, grifo nosso).
Neste entendimento, irrefutável é a importância do Estado no exercício do controle da sociedade em seus diversos espectros de análise. Especificamente no que se refere ao controle da violência, incontestavelmente presente na sociedade, o poder público, por intermédio de seus órgãos, atua de forma a reprimir e prevenir a prática criminosa, manutenindo a paz e a ordem social, tudo em respeito e observância estrita ao ordenamento jurídico estatal.
6. O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA E A VIOLÊNCIA POLICIAL
Denota-se sem maiores problemas, que os acontecimentos históricos do país, com algumas exceções, sempre tiveram a participação ativa dos aparelhos repressivos do Estado, que a pretexto de garantir a ordem e a segurança, intervinham e influenciavam a própria condução da história. Pode-se citar preliminarmente como exemplo a Independência do Brasil, porquanto, em que pese a existência de fundamentos eminentemente políticos para que Dom Pedro I proclamasse a independência, esta só ocorreu efetivamente com a imposição de uma espada. (VERONESE, 1999, p. 14).
A instituição da República no Estado brasileiro também não fugiu à ação dos aparelhos repressivos estatais. Além do mais, a proclamação da República foi obra dos militares, logo que a instalação do então governo provisório, com a posterior instituição da república, ficou a cargo do Marechal Deodoro da Fonseca, um membro do exército, que mais tarde seria sucedido por outro militar, o Marechal Floriano Peixoto. (VERONESE, 1999, p. 15).
Com o passar do tempo, gradualmente e de forma incisiva, o poder militar foi adentrando ao poder civil e garantindo para si o monopólio da intervenção legítima, constituindo-se em verdadeiro poder político, pretensamente garantidor da ordem, da segurança e da própria instituição democrática brasileira. Convencidos de sua autoridade interventora e atuante, em 1964, os militares alcançam o poder político através de um golpe, impondo uma ditadura militar e todos os rigores de um regime político sem liberdades e de direitos individuais fragilizados. Nas palavras de Borges Filho (1996 apud VERONESE, 1999, p. 15):
Os militares, após o golpe, assumem (como instituição) o papel de condutores dos negócios do Estado, afastando os civis dos núcleos de participação e decisão política, transformando-se em verdadeiros atores políticos, como civis passando a meros coadjuvantes no sentido de dar ao regime uma fachada de democracia e de legitimação do ‘status quo’.
Hodiernamente não mais vivemos sob o comando de uma ditadura militar. A redemocratização do Brasil com início em 1984 trouxe de volta a garantia, ao menos no aspecto formal, do exercício de direitos individuais como o de locomoção e o de liberdade, estes obviamente englobados pelo princípio da dignidade humana. (VERONESE, 1999, p. 16).
A partir de 1985, quando se instaurou o período de abertura política, visava-se restaurar um Estado de Direito dilacerado por anos de repressão política, cujas marcas não desaparecem simplesmente da história, subsistindo, contudo, resquícios do autoritarismo nas relações sociais, configurando um Estado autoritário, embora com feições democráticas. (AMADOR, 2002, p. 62).
Em razão de estes fatos históricos repercutirem na atualidade, Veronese (1999, p. 16) atenta:
Os aparelhos repressivos, entretanto, parecem ainda não estar ‘adaptados’ a este modelo de governo supostamente democrático, cujo princípio básico é o império da Lei e todas as garantias a ela inerentes. As ações desses aparelhos insistem em reproduzir toda uma estratégia de repressão destinada a combater inimigos e não cidadãos. A tradição de arbitrariedade e abusividade no exercício da coerção legítima se perpetua, mesmo sob a égide de um regime democrático e que tem por fundamento a dignidade da pessoa humana, como bem preceitua o próprio artigo 1° da Constituição Federal.
Vale ressaltar que a violência policial, em termos conceituais, pode ser considerada como violência sistêmica, na medida em que os seus efeitos são considerados reflexos do passado político brasileiro. Na análise de Miranda (2003, p. 02) há pelo menos quatro concepções distintas de violência policial:
O uso da força física contra outra pessoa de forma ilegal, não relacionada ao cumprimento do dever legal ou de forma proibida por Lei; o uso desnecessário ou excessivo da força para resolver pequenos conflitos ou para prender um criminoso de forma ilegítima; os usos irregulares, anormais, escandalosos ou chocantes da força física contra outras pessoas; o uso de mais força física do que um policial altamente competente consideraria necessário em uma determinada situação.
Esta violência policial, chamada por parte da doutrina de violência oficial, é definida nas palavras de Herkenhoff (1994 apud SANTOS, 1999, p. 61) nestes parâmetros:
A violência oficial pode ser exercida contra a Lei ou à sombra da Lei. Violências contra a Lei são as prisões arbitrárias efetuadas pelas Polícias: prisões para averiguação, prisões correcionais, prisões por falta de documentos; ou as prisões legais (prisões em flagrante) que se tornam ilegais porque não foi admitida a fiança permitida pela Lei, ou deixaram de ser imediatamente comunicadas ao juiz competente, ou ultrapassaram o prazo previsto. Violências contra a Lei são os interrogatórios obtidos mediante tortura, os maus-tratos contra presos, os espancamentos. A violência oficial contra a Lei pode ser exercida pelo próprio Poder Judiciário, e é talvez mais grave do que a violência policial, porque mais dificilmente remediável: são os decretos injustificados de prisão preventiva; são as prisões que ultrapassam o prazo legal de formação da culpa etc. Violência à sombra da Lei é a prisão em si, um anacronismo em face do estágio atual das mais diversas Ciências Humanas. Violência contra a Lei é a prisão como a temos aqui, que corrompe o corpo e degrada o espírito dos que são por ela vitimados, e é também a terrível incomunicabilidade do preso.
Com efeito, muito embora a sociedade brasileira esteja sob a égide de uma Constituição democrática, a realidade amiúde se distancia da ideologia de Estado e do formalismo do legislador constituinte.
Contudo, é certo que o Estado, seja qual for sua ideologia ou sistemática, é incontestavelmente, fonte repressora. Isso conduz a afirmação de que a única possibilidade de limitar a violência seria concentrando-a, distinguindo-se a violência lícita da ilícita. Ora, se lícita seria somente a violência estatal, necessário se faz um rol de princípios e regras que viabilizem a fiscalização e aplicação deste controle estatal sobre a violência institucionalizada. (PETRY, 2001, p. 109).
Assim sendo, a Organização Policial obteve legitimidade, e alcançou o direito da prática da violência, e seu ofício conformou-se com o um serviço cujo produto se vincula a paz social, isto é, a critérios de produtividade que estão localizados na ausência do crime e, conseqüentemente, de criminosos e de desordem social, resultando na institucionalização e legitimação da prática da violência pela polícia no momento em que ela monopolizou o direito ao uso da força física, na mesma proporção em que ela foi destituída da sociedade. (AMADOR, 2002, p. 54).
Nestes moldes, não é difícil observar a possibilidade de uma ação física do policial, legítima e dirigida ao outro, para que ele retome o curso da ordem e da Lei, contendo a possibilidade de uma violência maior. Essa modalidade de violência diferencia-se da violência ilegítima, a qual possui caráter de arbitrariedade e de supressão do direito do outro. (AMADOR, 2002, p. 56).
Vale dizer que o uso da violência arbitrária, ilegal, ilegítima, estará sempre vedado ao agente do Estado, sobretudo o policial. Já o uso da força, ou seja, o ato discricionário legal, legítimo e idealmente profissional, ainda que intensa, mas desde que proporcionalmente necessária, jamais constituirá violência e logo, é deferida a todos os policiais em dadas circunstâncias fáticas. Diga-se o mesmo quanto ao uso da arma de fogo, que restará autorizado legalmente enquanto último recurso e após a ineficiência dos outros meios. (AMARAL, 2004, p. 17).
O uso comedido e proporcional da força é inerente ao trabalho da polícia. Todo policial precisa saber dessa possibilidade legal para que possa, com tranqüilidade jurídica, exercer função de preservação da ordem pública. O uso legítimo da força não se confunde, contudo, com a truculência, com a violência. De fato, a força legítima, autorizada pela Lei e pelo Direito, pode ser até mais intensa, mais agressiva e mesmo assim, ser mais facilmente aceita que a menor das violências. (AMARAL, 2004, p, 17).
Mesmo diante de tais afirmações, a violência policial é uma modalidade de violência que preocupa cada vez mais os cidadãos, os próprios policiais, os governantes e demais segmentos da sociedade, porquanto de um lado é praticada por agentes do Estado que têm a obrigação constitucional de garantir a segurança pública, a quem a sociedade confia a responsabilidade do controle da violência. Os casos de violência policial, ainda que isolados, corroboram um sentimento de descontrole e insegurança que dificulta qualquer tentativa de controle e pode até contribuir para o surgimento de outras formas de violência. (MIRANDA, 2003, p. 03).
Destarte, é certo que há causas que influenciam na materialização da violência perpetrada por policiais, podendo-se citar alguns fatores que culminam na violência exercida pela polícia, dentre os quais está:
O aumento vertiginoso da criminalidade e, principalmente, da criminalidade violenta e traumatizante, cujo combate inglório leva a um estado de beligerância permanente com mortes e feridos, tanto do lado dos bandidos, como do lado dos policiais. O bandido dificilmente se entrega e, quando é capturado, só confessa os seus crimes quando a polícia usa de violência. Pelo estado de beligerância e pelas mortes e lesões físicas de companheiros, o policial cria dentro de si uma visceral e odiosa animosidade e, quando pega o bandido, e ele resiste, não confessa seus crimes por meios legais e pacíficos, há como que explosão sem freios de toda aquela visceral animosidade e acaba praticando toda sorte de violência e até a morte do detido, em muitos casos inocente. (FARIAS JUNIOR, 1996, p. 193).
Diante destes problemas que tem reflexo imediato no trabalho da polícia, observa-se que:
O mesmo policial que é trabalhador é também pai, mãe, esposo, esposa, cidadão e cidadã de uma nação em crise, em um mundo em crise que parece já ter se acostumado a suportar o insuportável. Portanto, os efeitos-causas da violência articulam-se em um complexo mosaico de contornos nem sempre definido, mas certamente ‘coerentemente’ articulados, de maneira que, ao analisar o recorte específico da violência policial, se está, ao mesmo tempo, considerando a violência urbana, a violência doméstica, a violência do mundo do trabalho, entre outras. (AMADOR, 2002, p. 162).
Dessarte, muito embora não se possa negar a existência de causas que implicam decisivamente na conduta do agente policial, vale ressaltar que a polícia é instituição incumbida de garantir a aplicação da Lei. Logo, cabe a ela adotar medidas legais de proteção à sociedade, bem como a cada um de seus integrantes, não importando se são vítimas ou infratores. Diante disso, cria-se um importante preceito ético da atuação da polícia, pois sendo responsável pela aplicação das Leis, logicamente, não pode valer-se de métodos extralegais para apurar a autoria de infrações, uma vez que sua atuação deve ser pautada rigorosamente pela legalidade. (ZUCCO; FARIAS, 1999, p. 86).
A luz da verdade, armas e pancadas não são a essência do trabalho policial, sequer estatisticamente, mas sim a Lei e o Direito. O policial é, pois, profissional do Direito, operador jurídico, de tal forma que só muita deturpação obscurece tal verdade. (AMARAL, 2004, p. 18).
Nesta mesma linha de análise, o consultor de Direitos Humanos da polícia holandesa, C. Rooke (1997 apud ZUCCO; FARIAS, 1999, p. 87) assim assevera quanto ao assunto:
Não obstante, suas ações deverão estar dentro da Lei e não serão arbitrárias. Os encarregados da aplicação da Lei podem, em tais situações, sofrer ou perceber uma noção de desequilíbrio ou injustiça entre a liberdade criminal e os deveres de aplicação da Lei. No entanto, devem entender que esta percepção constitui a essência daquilo que separa os que aplicam a Lei daqueles infratores (criminosos) que a infringem. Quando os encarregados da aplicação da Lei recorrem a práticas que são contra a Lei ou estão além dos poderes e autoridades concedidos por Lei, a distinção entre os dois já não pode ser feita. A segurança pública seria posta em risco, com conseqüências potencialmente devastadoras para a sociedade.
Assim, com base na legalidade que norteia a conduta dos aplicadores da Lei, entre eles a polícia, verifica-se então que o emprego da força deve atender a outros princípios que pautam suas atividades, quais sejam, os da necessidade e proporcionalidade. Desta forma, o uso da força por parte dos policiais deve ser excepcional, embora se admita que eles estão autorizados a utilizá-la para prevenção de crimes e efetivação de prisões legais. O que os aplicadores da Lei devem fazer é utilizar a força na proporção necessária e causando o menor dano possível à integridade das pessoas envolvidas na ocorrência policial. (ZUCCO; FARIAS, 1999, p. 88).
Isso porque o direito a dignidade humana não provém de posição social, conduta ou outro fator, mas sim do direito natural, logo que tal garantia é elementar a todas as pessoas, e decorre da simples condição de ser humano. Dessarte, todas as pessoas tem o direito de serem respeitadas, independentemente de terem praticado algum ato contrário à Lei ou não. Assim, o objetivo primordial é extirpar da cultura da polícia atitudes tais como a utilização de violência, a prática de tortura, entre outros meios. (ZUCCO; FARIAS, 1999, p. 87).
O direito ao respeito à dignidade da pessoa humana não são antíteses de polícia eficiente, senão de polícia bárbara, violenta, não profissional. Aliás, os policiais que cumprem pena são assíduos reclamantes do seu próprio direito à dignidade. Assim, a autoridade e observância indelével do princípio da dignidade humana não ocorrem em consideração a bandidos e criminosos singularmente considerados, todavia seu império e preservação se devem em função do conjunto de todos os demais humanos, que merecem salvaguarda de seus direitos mínimos, porém essenciais a sua própria existência, e que são garantidos não somente pelo Direito interno, mas também pelo Direito internacional, com virtuais sanções até para Estados violadores e omissos. (AMARAL, 2004, p. 18).
Neste sentido, somente a partir de uma formação humanitária é que se poderá construir o policial cidadão, consciente dos seus deveres e, sobretudo, conhecedor dos limites do seu atuar, e é pela sua ação que poderá promover a crença de que o recurso dos meios legítimos da justiça é ainda o melhor meio de combater a violência e construir a paz. Somente a partir do investimento em uma formação renovadora, democrática e humanizada dos agentes repressores, é que a violência policial cederá lugar ao exercício consciente da função repressiva do Estado. A construção efetiva da democracia depende, fatalmente, desta nova formação, sob pena de perecer muito antes de se tornar uma realidade. (VERONESE, 1999, p. 18).
Desta forma, denota-se impossível estruturar um estado democrático sob as bases ditatoriais, incompatível com a atual concepção de sociedade idealizada pelo povo brasileiro, manifestada expressamente
Desta forma, concebe-se que o Policial Competente, aquele com formação pautada na atual dicção Constitucional, que tem como fundamento a dignidade humana, quando em contato direto com o criminoso, deve agir com profissionalismo, exaurindo possíveis condutas violentas, quando desnecessárias, porquanto assim procedendo, estar-se-ia contaminado com o que combate, e igualando-se contra quem combate.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, constata-se sem embargos que o atual Estado democrático de Direito sob o qual vivemos, previsto e estruturado expressamente
A dignidade humana é fundamento que incide em toda a legislação interna de determinado Estado, uma vez que tal princípio funciona como norte de toda produção legiferante. Neste diapasão, tal princípio não incide apenas no aspecto formal, mas se aplica em toda atuação pública ou privada, sempre em homenagem às bases solidificadoras do Estado democrático de Direito.
Isso porque a dignidade é intrínseca ao próprio homem, é inerente a sua natureza e surge com o início de sua existência. Não se pode olvidar a presença desse fundamento
Em razão da incidência do referido princípio em toda a esfera jurídica nacional, constata-se que a dignidade humana não poderia deixar de estar presente na condução dos trabalhos referentes à segurança pública. Logo, os agentes incumbidos de tal função devem executar suas atribuições com observância em tal fundamento, não apenas em respeito ao Estado e ao seu ordenamento, mas em especial consideração à própria instituição imbuída de tal múnus.
Como dito, a instituição policial tem a responsabilidade de pautar suas atividades sob a égide da legislação vigente, que representa, de certa forma, o anseio de determinado corpo social. Sob o princípio da legalidade, a Polícia executa suas atribuições, concretizando o Direito, sempre em respeito às bases estruturantes do Estado, a fim de construir uma sociedade livre de injustiças, confiante nos seus representes e na Lei.
Neste processo cognitivo, concebe-se que a Constituição de 1988, como compêndio normativo que abarca os direitos inerentes a todos e assevera a estrutura e a forma de atuação do Poder Público frente à sociedade, quando não observada, macula o âmbito da conduta do agente transgressor, corroborando dessa forma o sentido e a importância das disposições da Lei Maior. Não há como negar que a Carta Magna deve guiar o futuro de uma nação, para que esta prossiga de forma sólida e segura.
Embora tal ideologia seja a aspiração insculpida no texto normativo da lex legum, não raro observamos atos desvirtuados, arbitrários, desproporcionais, injustos, violentos, propalados por agentes policiais que violam e agridem diametralmente direitos elencados como imodificáveis em nossa hodierna Constituição. Essa prática tornou-se comum nos calabouços das Delegacias ou em qualquer outro lugar em que a truculência pudesse ser concretizada, em efetivo retorno a momentos históricos onde os déspotas, por mera discricionariedade, aplicavam sua vontade.
Percebe-se com isso que a Polícia deve ter como essência de seu trabalho a Lei e o Direito, e não as armas e a força física, esta utilizada em última instância. Destarte, o Policial é profissional do Direito, operador jurídico, e suas atividades se destinam a garantir a ordem pública na convivência dos homens
Espera-se sempre que os agentes policias, representantes da entidade, como efetivos aplicadores da Lei, estejam preparados para controlar sua conduta em situações concretas de tensão. Não basta estarem treinados para atirar com exímia precisão ou habilitados para se valerem dos meios violentos de coerção, mas devem acima de tudo estar capacitados para pressupor a precisão mental dos controles seletivos das hipóteses juridicamente permissivas.
É certo que os Estados tem a responsabilidade de proteção do direito à vida, à dignidade, a integridade, à liberdade e à segurança pessoal quando outorgam aos encarregados da aplicação da Lei, no caso a Polícia, a autoridade legal para o uso da força. Assim, é a própria Lei que define as circunstâncias sob as quais a força pode ser enveredada, bem como os meios que podem ser utilizados em uma ocorrência singular e concreta.
É sob este espectro cognitivo que a atividade policial deve ordenar sua conduta profissional, reformulando assim o seu papel institucional. Destarte, vem a lume a indispensabilidade do agente policial possuir condicionamento científico e psicológico, para então se posicionar livremente avesso à violência, à agressividade, firme, convicto de seu trabalho, integrado na sociedade. Apenas desta forma será obtida a condição de exercer seu papel de guardião dos direitos individuais e coletivos, atuando como membro indelével de proteção e prevenção, sob pena de ser ineficiente.
O princípio da dignidade humana dita as atividades tantos dos particulares como das entidades públicas, que devem executar suas atribuições com enfoque em tal fundamento. Transgredi-lo não significa apenas responsabilização por crime ou infração disciplinar, mas ataque direto e atroz a toda a humanidade e conseqüentemente ao Estado de Direito.
Apenas a profissionalização consciente e esclarecida dos Policiais pode ser a efetiva solução para a violência Policial. Sendo a função precípua da Polícia a civilização, somente a ausência do caráter profissional, de formação ética mais sólida, pode comprometer tal objetivo. A ignorância, a prepotência, a falta de humanismo, ou seja, a carência de consciência do valor supremo da dignidade do homem, compromete não só o próprio agente policial, mas toda a corporação, que tem sua visibilidade e credibilidade depreciada.
É preciso também que existam modificações estruturais na própria instituição policial, com enfoque no caráter humano do agente policial. Fatores como a motivação, melhoria salarial, melhorias na assistência social, melhorias na assistência médica, odontológica e jurídica e reconhecimento daqueles que se destacam em suas atividades são quesitos de bom alvitre que merecem maior atenção por parte das entidades incumbidas de promover a segurança pública.
Não bastam severos exames psicotécnicos para detectar desvios de ordem psicossocial dos pretendentes de cargos policiais. É preciso reconstruir, modernizar e uniformizar os currículos dos cursos de formação de policiais, adequando-os aos avanços implantados no Brasil com a Constituição de 1988, dando ênfase ao Direito e às noções básicas da atividade policial, reduzindo as cadeiras das matérias de cunho eminentemente militar.
A formação Militar, que é fundamentalmente profissional da guerra, não deve ser confundida com a formação do Policial, porquanto o mais cruel dos bandidos não é inimigo mortal a ser eliminado, senão a ser preso. A essência da guerra é a eliminação do inimigo; a essência da missão Policial é preservar a ordem pública e prender o criminoso tão somente. Essa confusão na Constituição e na rotina da Polícia pode explicar parte da crise do sistema de segurança pública do Brasil.
Nesses parâmetros, iniludível que os direitos humanos, em especial a dignidade humana, é o ponto nevrálgico da instituição policial, logo que constitui conseqüência lógica e automática do desenvolvimento e vivência do Estado democrático de Direito em que vivemos.
Desta forma, concebe-se que o Policial Competente, aquele com formação pautada na atual dicção Constitucional, que tem como fundamento a dignidade humana, quando em contato direto com o criminoso, deve agir com profissionalismo, exaurindo possíveis condutas violentas, quando desnecessárias, porquanto assim procedendo, estar-se-ia contaminado com o que combate, e igualando-se contra quem combate.
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