Jorge Luiz de Oliveira da Silva
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
No mundo contemporâneo, em especial nos grandes centros urbanos, com o fenômeno da degradação dos valores éticos e morais, as pessoas passaram a sofrer diferentes tipos de violência. A história nos ensina que a violência sempre foi um fator presente nas relações humanas, a ponto de Durkheim afirmar que o crime é um fenômeno social normal e necessário ao próprio desenvolvimento da sociedade[1]. No entanto, vivemos a era da banalização dos sentimentos humanos, produto de um mundo individualista, narcisista e materialista. A busca desenfreada pelo poder, sucesso e bens materiais acabou por gerar uma sociedade sem freios éticos, onde o semelhante é visto apenas como um objeto a ser manipulado em direção ao objetivo a ser alcançado. Tal afirmação pode parecer exagerada ou contraditória, ao percebermos que diariamente somos bombardeados por alocuções e projetos de defesa dos Direitos Humanos, que aparentam estar cada vez mais em evidência. Porém, nada há de contraditório, uma vez que só desenvolvemos em extremo determinados institutos, quando o seu conteúdo de proteção está em franca ameaça.
Em relação aos Direitos Humanos, em especial após o advento da Constituição da República, de 1988, a institucionalização de tal conteúdo, muito embora de extrema relevância, ainda não foi suficiente para equilibrar nossa sociedade, altamente verticalizada e tendente a oprimir aqueles que estão em posição inferior, quer seja ela social, profissional ou mesmo quanto à força física (como no caso do ladrão que por ser detentor de uma arma oprime sua vítima).
O que desponta como fator curioso é que o ser humano sempre e cada vez mais está em contato com a violência. Quando esta se faz sentida, ativa-se a indignação, protestos, mobilizações e ações repressoras. No entanto, tal conjunto de ações somente é adotado quando a violência é ostensiva. Nossa sociedade somente se aflige diante de fatos contundentes e paupáveis. Por este motivo, a violência invisível, que lentamente toma conta das linhas de trabalho, que atinge profissionais de todos os setores, públicos ou privados, que fulmina a alma e a vida de tantos, passa por despercebida, até mesmo em relação às suas vítimas. Estamos nos referindo ao que se denomina no Brasil de Assédio Moral; Mobbing, nos Países Nórdicos, Suíça e Alemanha; Harassment ou Mobbing, nos Estados Unidos da América; Marahachibu, no Japão; Harcèlement Moral, na França; Acoso Moral, na Espanha e Itália ou Bullying, na Inglaterra. Qualquer que seja a denominação utilizada, o assédio moral é um dos males mais terríveis que atingem atualmente os trabalhadores em todo mundo.[2]
O assédio moral, conhecido como “a violência perversa e silenciosa do cotidiano” ou psicoterror, nada mais é do que a submissão do trabalhador a situações vexaminosas, constrangedoras e humilhantes, de maneira reiterada e prolongada, durante a jornada de trabalho ou mesmo fora dela, em razão das funções que exerce; determinando com tal prática um verdadeiro terror psicológico que irá resultar na degradação do ambiente de trabalho e na vulnerabilidade e desequilíbrio da vítima, estabelecendo sérios riscos à saúde física e psicológica do trabalhador e às estruturas da empresa e do Estado. Certo é que o assédio moral poderá se caracterizar em outras relações, que não as trabalhistas. Poderemos vislumbrar o assédio moral em relações familiares (pais e filhos, entre casais etc), em relações educacionais (professores/diretores e alunos) e outras que possibilitam uma certa dose de verticalidade entre seus integrantes. No entanto, o assédio moral passou a ser enfocado basicamente sob o prisma laboral, em razão da repercussão mundial de seus efeitos e por ser o ambiente de trabalho o mais propício ao desenvolvimento desse tipo de fenômeno, até mesmo em razão das ingerências protagonizadas pelo capitalismo moderno, fomentado pela idéia de globalização e, por conseguinte, pela exigência de um novo perfil de competitividade do trabalhador moderno.
Neste contexto, os militares, categoria peculiar de trabalhadores públicos, não estão imunes à submissão a um processo de assédio moral, conforme poderemos constatar adiante. Ao analisar o fenômeno do assédio moral aplicado aos militares, não há dúvida acerca dos cuidados extremos que se deve adotar, tendo em vista a estrutura personalíssima da carreira militar, fundamentada nos pilares constitucionais da hierarquia e disciplina. Portanto, um alerta preliminar: não devemos confundir submissão à hierarquia e disciplina, exercidas dentro dos legítimos limites, com submissão ao processo de assédio moral. Eis aí a grande relevância do tema.
2. OS MILITARES E O ASSÉDIO MORAL
A estrutura militar, incisivamente verticalizada e fundada no binômio constitucional hierarquia e disciplina, cria ambiente propício ao desenvolvimento de processos de assédio psicológico. Não que tais premissas reflitam necessariamente condutas que afrontem à dignidade humana, não. A observância da hierarquia e disciplina é fundamental para o sucesso da missão constitucional atribuída às Forças Armadas e às Forças Auxiliares, devendo ser exercidas em conjunto com as virtudes militares, tais como: camaradagem, espírito de corpo, probidade, honra militar, senso de justiça, respeito, caráter etc. Aliás, em toda e qualquer empreitada no mundo laboral se não houver hierarquia e disciplina, certamente o fracasso não tardará. No entanto, o exercício desses fatores deve ser realizado com responsabilidade e equilíbrio, sem os quais as bases da carreira militar estaria desvirtuada. O acatamento e o respeito aos superiores, a obediência às ordens legais emanadas, além do devotamento à nobre missão atribuída aos militares, é o indicativo de sublimação do ser humano soldado. Mesmo porque, as peculiaridades que envolvem a carreira militar intensificam ainda mais a estrutura hierárquica, de forma que, do soldado menos graduado ao Oficial General de mais alto posto, não há hipóteses em que possamos prescindir da obediência hierárquica e da disciplina, conforme bem asseverou Rui Barbosa: “Bem sabe mandar quem soube obedecer. A obediência é a condição orgânica da utilidade da força, é a sua legitimação, é o segredo moral dos triunfos militares”.[3]
No entanto, a condição de militar não é suficiente para despir o ser humano de suas mazelas. Em qualquer grupo social sempre há de se encontrar aqueles que não se adequam eticamente às relações humanas, extravasando seus desvios de personalidade e estabelecendo prejuízos aos seus semelhantes. Desta forma, quando nos defrontamos com tal perfil, certamente o caminho estará aberto à perpetração do processo de assédio moral.
Porém, em se tratando de ambiente militar, todo cuidado é pouco no trato desta temática. A possibilidade de oportunistas lançarem mão do fenômeno com o único objetivo de tumultuar a Administração Militar ou por questões de vingança pessoal, é uma realidade. Desta forma, é importante assentar que o rigor inerente à profissão das armas, exercido no contexto de legalidade e legitimidade, não pode ser encarado como assédio moral.
Registramos, neste sentido, o caso de um jovem sargento da Força Aérea Brasileira que nos procurou, afirmando estar sendo vítima de assédio moral de seu novo chefe, pelo fato de estar cursando Faculdade de Direito. Assim, passou a relatar seu caso: havia realizado seu curso de formação militar na especialidade de mecânico de aviões, para que atuasse embarcado nas aeronaves. Assim que se formou, foi classificado em uma Unidade Aérea da Força Aérea Brasileira. No entanto, em razão da contenção de gastos, poucas missões eram previstas para as aeronaves, o que resultou em seu aproveitamento momentâneo na administração da Unidade, uma vez que possuía conhecimentos de informática. Assim, aproveitou ele para começar a cursar a Faculdade de Direito. Tudo parecia bem quando, dois anos depois, houve a mudança de comandante na Unidade Aérea. Assim que o novo comandante assumiu, procurou saber quais os graduados faziam curso superior e qual seria tal curso. Semanas depois, o jovem sargento foi comunicado que deveria deixar a burocracia da Unidade e ser aproveitado nas funções para as quais tinha se preparado, ou seja, como mecânico de aviões embarcado. O mesmo entendeu que o ato representava uma perseguição do novo comandante, pelo fato de estar cursando a Faculdade de Direito e em razão de uma antipatia gratuita. Alegava, ainda, que a nova função era desgastante e perigosa, representando um risco à sua saúde e à própria vida. Ora, evidentemente não estamos diante de nenhuma hipótese de assédio moral. O novo comandante simplesmente desejou reordenar sua equipe de acordo com a formação profissional de cada um. Se a pretensa “vítima” estava fora de suas funções, o ato do novo comandante foi legal e legítimo. As alegações de ser a função desgastante e perigosa não podem prosperar, uma vez que esta é sua especialização profissional, cabendo à organização dotar o desenvolver dos trabalhos da segurança exigida nas normas legais. Se o comandante desejou inviabilizar a continuidade do curso de Direito do sargento, uma vez que as constantes viagens podem atrapalhar o aproveitamento do mesmo, agiu dentro dos preceitos legais e com legitimidade, não podendo ser censurado por isto, nem tampouco visto como um viabilizador do assédio moral, pois sua conduta não se caracterizou como abusiva ou arbitrária. Neste ponto, precisa a observação de Marie-France Hirigoyen, no sentido de consistir o assédio moral em um processo abusivo, que não pode ser confundido com decisões legítimas, que dizem respeito à organização do trabalho, como transferências e mudanças de funções, no caso de estarem de acordo com o contrato de trabalho.[4]
Desta forma, o assédio moral deve ser analisado com muita cautela, sob pena do instituto ser banalizado e angariar o descrédito por parte da comunidade jurídica e do Poder Judiciário. O Comandante militar possui responsabilidade vital neste contexto, cabendo às autoridades militares a apuração com isenção de qualquer tipo de alegação referente à ocorrência de assédio moral no âmbito de seu comando, esclarecendo a situação e punindo, se for o caso, os autores do processo vitimizador ou o militar que se valeu de inverdades para desvirtuar os fatos, alegando impropriamente a existência de assédio moral.
3. O ASSÉDIO MORAL E O CÓDIGO PENAL MILITAR
O Brasil, por mais incrível que pareça, foi o País que mais produziu leis sobre assédio moral, até o momento. No entanto, todas as leis voltadas para a Administração Pública (Estadual e Municipal).
No âmbito penal, muito embora tramite na Câmara dos Deputados Projeto de Lei tendente a criminalizar o assédio moral, ainda não temos uma legislação protecionista em âmbito federal. No entanto, o Código Penal Militar em vigor não é totalmente insensível em relação ao processo de assédio moral. Muito embora não faça previsão de nenhum tipo penal direcionado diretamente a punir quem integra no pólo ativo do processo de psicoterror, prevê alguns tipos penais que podem perfeitamente se amoldar a determinadas condutas com potencial para compor o aludido processo. Assim, o CPM não prevê punição para o assédio moral, enquanto processo complexo, mas faz previsão de tipos penais direcionados a condutas que integram ou podem integrar, no caso concreto, o processo.
O art. 174 do CPM trata do delito de “Rigor Excessivo”, podendo ser adotado plenamente em hipóteses de processos de assédio moral. O art. 175 do CPM prevê o delito de “Violência contra Inferior” e o art. 176 faz previsão do tipo penal “Ofensa aviltante a inferior”. Ambos, com direcionamento de proteção específica ao subordinado hierárquico, podem ser aplicados na ocorrência do fenômeno,dependendo dos métodos utilizados pelo assediador. Ressalte-se que o Código Penal Militar ainda contempla os principais tipos penais também previstos na legislação comum, que podem ser aplicados com o mesmo enfoque em se tratando de assédio moral: art. 205 (Homicídio), art. 207 (Provocação Direta/Indireta ou Auxílio ao Suicídio), art. 209 (Lesão Corporal) e art. 213 (Maus-Tratos), arts. 215 a 217 (Crimes contra a Honra). Muito embora o art. 136 do Código Penal, que trata do crime de maus-tratos, não venha a se adequar à figura do assédio moral no ambiente de trabalho, o art. 213 do CPM pode ser direcionado a essa realidade, uma vez que a instrução militar é uma das formas cotidianas de desenvolvimento do chamado “ofício militar”. Assim, a subordinação para fins de educação e instrução, que estabelece um dos elementos para adequação típica do tipo penal em relevo, acaba por adotar uma outra dimensão daquela relacionada ao crime comum.
Importante salientar que as alegações de prática de assédio moral não devem ser manejadas de forma irresponsável, como condutoras de vinganças pessoais ou instrumento de vitimização a macular a honra de outros militares. Desta forma, assim como caberá ao Comandante militar, ante a indícios de prática de assédio moral, noticiadas de forma concreta, instaurar o competente inquérito policial militar, fins apurar os fatos; caso se conclua que as acusações de assédio moral foram infundadas e com o mero intuito de achincalhar o pretenso ofensor; deverá o Ministério Público Militar denunciar aquele que de forma mesquinha e leviana provocou a instauração de IPM, sabendo que o indiciado era inocente, como incurso nas penas do art. 343 do CPM (Denunciação Caluniosa). Nada mais justo, consagrando-se a máxima que a toda liberdade corresponde uma responsabilidade.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A discussão sobre o tema envolvendo o assédio moral, em especial em relação ao ambiente militar, é complexa e não se esgota com as considerações do presente artigo. No entanto, não se pode olvidar da constatação de ser o assédio moral uma realidade atinente ao ambiente de trabalho, também incursionada no ambiente militar. Logo, em razão dos pilares constitucionais, nos quais se assentam as Forças Armadas (e também as Forças Auxiliares), o cuidado na análise de suposto caso de assédio moral deve ser redobrado. Não se pode transformar o fenômeno aqui tratado, real e com potencial extremamente vitimizador, em argumento para acusações infundadas, tendentes a desestruturar as Instituições e a afrontar à dignidade das pessoais que são acusadas injustamente de protagonizar o processo. Para que esse fator de cautela seja cumprido, é imperioso que os Comandantes militares não meçam esforços no sentido de apurar rigorosamente e de forma equilibrada as informações acerca de existência da prática de assédio moral no âmbito de seus respectivos comandos; destinando aos culpados as punições regulamentares ou remetendo a questão à Justiça Militar, ante a ocorrência de indícios de crime militar.
É importante ressaltar que, muito embora possamos utilizar, no âmbito da Justiça Militar, os tipos penais mencionados no item 3, sancionando penalmente o assediador, temos um direcionamento apenas para determinados tipos de condutas que compõem o processo de assédio moral ou para as conseqüências por este geradas, inexistindo legislação abrangente que tutele de forma específica o fenômeno como um todo, no âmbito federal. Ademais, sempre é bom alertar que, ante a hipótese de aplicação, por exemplo, de um dos tipos penais citados, previstos no CPM, não estará sendo punido o assédio moral propriamente dito, mas sim uma ou algumas das condutas que integram o processo vitimizador. Ressalte-se, ainda, que os aludidos tipos penais são autônomos em relação ou assédio moral, ou seja: subsistem por si só. Logo, não é porque um militar foi condenado, por exemplo, pelos delitos previstos nos arts. 174, 175, 176 e outros, do CPM, que necessariamente estariam praticando assédio moral.
Pretendemos em outras oportunidades incrementar o estudo do assédio moral voltado para o ambiente militar, uma vez que consideramos o tema de grande importância e sua discussão de alta relevância no âmbito das relações humanas envolvendo as Forças Militares.
Notas:
[1] DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico; tradução de Pietro Nasseti. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 82-87.
[2] Entenda-se a expressão “trabalhadores” no sentido lato, englobando qualquer tipo ou espécie de força de trabalho, inclusive as atividades desenvolvidas pelos militares.
[4] HIRIGOYEN, Marie-France. Mal-Estar do Trabalho – refefinindo o assédio moral. Rio de Janeiro: Betrand Brasil, 2002, p. 34.
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