terça-feira, 7 de dezembro de 2010

190 – “Alô!? Tia, não é trote não!”



6dez2010 Em: Equipamentos, Polícia Militar, Reflexão Autor: Ewerton Monteiro
Há pouco estava zapeando na TV, quando começou o noticiário e uma nota em particular chamou minha atenção. Era minha vivência, o meu dia a dia sendo transmitido em cores e áudio vivos. Não, não era ficção, dramatização ou coisa assim. Era a realidade impressionante da vida de um policial. Na medida em que assistia arrepiava-me. Muitas vezes me vi em situações parecidas, situações aparentemente triviais, mas que, como foi mostrado pelo telejornal, requer atenção.
A notícia dava conta de uma criança de apenas oito anos de idade que fora seqüestrada por outra. Sim, a seqüestradora era outra criança de quatorze anos de idade. Pior, era prima da vítima. Esta já cooptada por seu namorado, um homem de mais de quarenta anos, fugitivo da cadeia de Botucatu. Por descuido dos dois seqüestradores, a criança conseguiu um celular e com presteza ligou para o 190, sendo prontamente atendida. Contudo, a atendente, a Sd 1°cl PM Elenice Gonçalves Lousada, da gloriosa Polícia Militar de São Paulo, não acreditou muito na história que a menina do outro lado lhe contava:
“Dando um ‘trote’ na Policia Militar essa hora da madrugada ‘querido’? É brincadeira, hein!”
Mas a garotinha insiste:
“Oh! Tia Não é um ‘trote’. Eu fui seqüestrada!”
A inteligência da menina e a presteza cominada com atenção e paciência da policial rendem a libertação. Então, pergunta-se o que anda acontecendo com nossas crianças? O que se passa com os atuais adolescentes? Como controlar e educar nossos jovens? Perguntas pontuais para uma sociedade que cresce a passos mil, que já não tem mais a característica bucólica de outrora.
No caso em questão, é notória a falência de todas as instâncias que cinge o caso e assim deveriam cuidar das crianças. Mas o poder público falha ao ter um custodiado seu solto, foragido, que vivia tranquilamente com tempo para arrumar namoradas e namoradas menores de idade. Outro problema, que já é familiar, é: como uma criança de apenas quatorze anos de idade tem um namorado de mais de quarenta anos de idade e foragido? Como os pais não têm controle desta criança? Não sabendo onde está, com quem anda, e o que faz? Criam leis e mais leis com a desculpa de resolução de todos os males, como se resoluções e normatizações tão somente fizessem a diferença. O problema é outro. Todos sabem, poucos falam e ninguém põe em prática.
Voltando a a minha vivência, explico o porquê das sensações. Cotidianamente atendo ligações de emergência. Essa é minha atual função, como num controle remoto na mão de um incauto zapeei por todos os serviços policiais e aqui estou, na Central de RP, desta forma, compreendi perfeitamente a incredulidade da policial ao receber a ligação da criança. A dúvida de desligar ou não, de ouvir ou não mais um ‘trote’. Óbvio que a realidade da Central da Policia Militar de São Paulo é outra, tenho certeza disso. Não saberia dizer se lá cumprem-se as metas e formas que são adotadas nos Call Centres, que dão condições mais dignas ou menos insalubres a seus atendentes, visando diminuir o desgaste e stress que o serviço provoca. Depois de um pesado plantão tomado por ‘trotes’, já me peguei atendendo o meu celular ou o telefone da minha casa falando: “Polícia Militar. Bom dia!”.
Ainda assim, a realidade é decerto outra, os fatores de risco e stress ao qual o Policial-Atendente é submetido são bem menores em comparação com os do nosso estado, ao menos os policiais do interior que de forma surreal desbravam suas atividades. Creio que tirando a Capital e Feira de Santana, as outras cidades têm centrais de atendimento telefônico – Emergência 190 – diminutas, com apenas um policial, dois a três telefones para atender, fazendo as vezes dum porteiro, sentinela, recepcionista, mensageiro, coletor de dados, armeiro (ou despachante de armas) e controlador de rádio. Tudo isso em 12 ou 24 horas de trabalho para uma só pessoa – no meu caso o Comandante foi bastante sensível a essa realidade e cedeu mais um homem para essa batalha – que, diga-se de passagem, pouco reconhecida (quase nada) dentro da instituição.
Realidades díspares de instituição para instituição no que tange a realidade de trabalho, mas totalmente congruentes no que diz respeito ao atendimento que deve sempre primar pela pessoa, pelo cliente, pelo solicitante. Confesso que por muito menos desligaria a chamada da garota na certeza absoluta de que se tratava de um ‘trote’ perpetrado por uma criança insone ou um adulto notívago, sobretudo levando-se em conta a hora da ligação. Cerca de 80% das ligações atendidas pelos 190 são ‘trotes’ (os outros 20% dividem-se em 10% para informações e 10% para ocorrências) e desse percentual 70% é feita por crianças (pesquisa desenvolvida por mim mesmo no meu local de trabalho, mas os números são parecidos com os oficiais de outras realidades), um absurdo vindo de uma cultura burra que é muitas vezes aprendida com os pais e passada de geração em geração.
Não compreendo como o governo não mantém campanhas constantes de divulgação e educação da população, até mesmo nas redes públicas, o que não lhes custaria quase nada. Além disso, é forma de prevenir, conscientizar e educar, o que traz rentabilidade, já que gasta-se menos. Ao deslocar uma viatura para um ‘trote’, além de tempo gasta-se combustível, óleo, pneu. O telefone fica mais tempo ocupado, o que onera na conta. Não seria mais interessante campanhas de conscientização dos pais e professores educando essas crianças? Porque manter campanhas sobre DST/AIDS só no carnaval? Ou campanhas de trânsito apenas nas vésperas de fim de ano ou nos feriados prolongados? O mesmo se dá com os ‘trotes’ para os serviços de urgência. Além de estressarem o servidor, se gasta com a máquina pública que é de todos (que fique bem claro), não previne nada e num ciclo vicioso a exaustão se repete, podendo custar caro para a sociedade que sempre paga a conta, neste caso com vidas em jogo. O mais racional seria um política educacional-preventiva com campanhas constantes e não pontuais nos diversos seguimentos da imprensa, chamando a iniciativa privada para tais promoções, junto com as escolas de ensino fundamental e médio e, lógico, com a participação dos pais (que podem e devem) para a compreensão destes que passariam para seus filhos a importância dos serviços de emergência que salvam vidas.
Agora mesmo está em curso uma belíssima campanha contra o Bullying encabeçada pelo apresentador Serginho Groisman. Não seria oportuno algo do tipo? Claro, é quase que impossível uma junção de tudo em todos os estados, mas o ‘trote’ para os serviços de urgência e emergência é algo comum a todas as instituições desse caráter e presente em todos os estados e cidades Brasil a fora, será que não seria mais estimulante e rentável uma propagação nesses moldes? Na verdade não sei como o pessoal de comunicação e divulgação do governo pensa ou age, mas eu bem sei da urgência em debelar esta prática nociva tanto para o atendente como para a sociedade que de forma factual paga a conta. Pode ser ingenuidade de minha parte pregar mudanças de proporções tão altas por meios tão elevados, mas é a vontade de ver a mudança acontecer e de ver a seriedade com a segurança, aliás, mudança e boa gestão com a coisa pública!

http://abordagempolicial.com/2010/12/190-alo-tia-nao-e-trote-nao/

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