domingo, 2 de janeiro de 2011

Ruim com ela, pior sem ela


Marcelo Alves Dias de Souza - Procurador da República


Recentemente, algumas pesquisas têm constatado a queda da confiança da população brasileira no nosso Poder Judiciário. Outro dia, em enquete realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, vi que a nota dada pelos entrevistados a esse Poder, em média, não chega a 5,0. Sabem de uma coisa? Para constatar essa desconfiança, acho que nem precisaríamos dessas enquetes “científicas”. Minha experiência (nada científica, confesso) tem mostrado que, em qualquer roda de amigos, em algum momento, alguém vai falar mal da nossa “Justiça”. Algumas vezes com razão; outras, nem tanto.

A verdade é que, não obstante felizes exemplos de uma “Justiça” efetiva, derradeira salvaguarda de direitos fundamentais (e assim há, também, quem dela fale muito bem), não podemos esconder que a coisa, no todo, não vai bem. E esse “não vai bem” não é de hoje. É uma crise aguda e crônica, se é que podemos juntar essas duas qualidades sem ofender a nossa gramática. E falo isso com certa tristeza, já que, mesmo que indiretamente, considero-me parte dos que fazem a Jurisdição do Estado brasileiro funcionar.

Mas a verdade é também que não podemos viver sem a Jurisdição, que é exercida pelo nosso Poder Judiciário. O que quero dizer é que nós, seres humanos, temos a necessidade de viver em sociedade, de vivermos, com outros seres humanos, em um agrupamento social. E embora se diga que onde há sociedade há Direito (ubi societas ibi jus, para imitar os mais cultos), a existência desse Direito, como mecanismo disciplinador da convivência humana, protetor dos interesses que gravitam em torno dos bens, não é suficiente para impedir os conflitos de interesses. Em outras palavras, vivemos em sociedade, mas vivemos também em meio a conflitos. E, claro, precisamos de um meio de resolver esses conflitos. Qual seria o meio por excelência? A Jurisdição do Estado, claro.

É certo que a humanidade já foi capaz de enxergar outros meios de solução dos conflitos de interesses. A autotutela é um exemplo. Em tempos primitivos, não existindo um Estado forte para dirimir os conflitos (pois, em muitos casos, não havia sequer leis como as conhecemos hoje), o ser humano que encontrasse resistência alheia à sua pretensão, usaria a própria força para satisfazê-la. Essa justiça privada estava (ou está, onde ainda se dá) caracterizada pela ausência de um juiz distinto das partes e pela imposição da decisão por uma das partes do conflito (a parte mais forte) à outra. No nosso estágio cultural, evidentemente, a autotutela não garante Justiça, mas sim a sujeição do mais fraco ao mais forte. No Brasil, aliás, constitui crime o exercício arbitrário das próprias razões (CP, art. 345), salvo quando a lei o permitir.

Bom, alguém poderá falar da autocomposição, em que uma ou ambas as partes abrem mão de seu interesse ou pelo menos de parte dele em prol de uma solução consensual. A verdade é que autocomposição tem como característica, ainda, a parcialidade, uma vez que depende da vontade de uma ou de ambas as partes envolvidas no conflito. A autocomposição, sem dúvida, tem o seu lugar no mundo atual, sobretudo no campo dos direitos disponíveis, sendo muito incentivada pelos estudiosos da ciência jurídica. Mas o fato é que, muitas vezes, a autocomposição não garante o Direito. Muitas vezes, compõe-se apenas porque é melhor um acordo razoável do que uma boa briga na Justiça (clichê com que, embora muito batido, tendo a concordar).

E de certo ainda temos a possibilidade da arbitragem. O direito brasileiro (e há inclusive uma lei especifica tratando disso entre nós, a Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996), em se tratando de direitos disponíveis (leia-se transacionáveis), deixa a critério das partes estabelecerem um outro “senhor”, que não o Estado-Juiz, para dar a solução ao conflito de interesses: um terceiro imparcial, da confiança das partes, denominado de árbitro. Se a arbitragem é uma solução adequada para alguns tipos de conflitos (por exemplo, casos de comércio internacional), ela é também deficiente em alguns pontos.  Ir a arbitragem é algo que fica, pelo menos num primeiro momento, a mero critério das partes e, queiramos ou não, não se tem a mesma segurança jurídica da Jurisdição, com seus recursos e a necessária e institucional imparcialidade dos juízes.

O fato é que ainda não descobrimos, para a solução dos conflitos de interesses, algo melhor que a Jurisdição do Estado. Parodiando o que disse Winston Churchill (1874-1965) acerca da democracia, a Jurisdição é o pior meio de solução dos conflitos de interesses, com exceção de todos os outros que conhecemos. Onde mais temos (ou deveríamos ter) a substituição das partes envolvidas pela total imparcialidade do juiz? Onde mais temos um “juiz natural”? Onde mais temos um duplo grau de jurisdição? Onde mais, a partir do monopólio do seu exercício pelo Estado e pela soberania deste, temos a pacificação do conflito com justiça (o famoso escopo de autuação do Direito) e a definitividade com a coisa julgada? Só na Jurisdição.

Como disse no começo, não podemos negar os problemas da Jurisdição: morosidade, certa falta de qualidade nas decisões, deficiente acessibilidade e por aí vai. Devemos, sim, enfrentá-los para minorá-los, porque, com a Jurisdição, o Poder Judiciário ou a “Justiça” (seja lá como você, leitor, a chame) teremos de conviver ainda por muito tempo.

A não ser que deixemos de ser tão “confusentos”, ruim com ela, pior sem ela.  

http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/ruim-com-ela-pior-sem-ela/169128

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