Dicotomia estrutural e violência policial
BENEDITO DOMINGOS MARIANO
O debate nacional sobre modificações das polícias no Brasil foi motivado muito mais pelos episódios que chocaram a opinião pública do que pela real vontade política de mudar regras e estruturas.
Governadores -até aqueles de partidos de esquerda, como Cristovam Buarque- foram a público dizer que os casos graves envolvendo policiais militares eram isolados.
É evidente que numa instituição com mais de 400 mil homens no país, como as Polícias Militares, casos como Eldorado do Carajás, Corumbiara, Cidade de Deus, Vigário Geral, Candelária, favela Naval, fazenda da Juta e os sequestros de Brasília e São Paulo (esse último seguido da morte de um menino de oito anos) são uma minoria em relação aos efetivos. Mas dar um caráter isolado a eles é não querer enfrentar a questão de que é necessário e urgente repensar as estruturas das polícias.
Exigir mecanismos que impeçam os agentes do Estado de se brutalizar e de cometer crimes tão cruéis e covardes (com a agravante de fazer isso sob o manto do poder de polícia) quanto aqueles praticados pelos próprios marginais é imperativo.
A polícia da democracia será construída na formação para a cidadania, na fiscalização e na apuração rigorosa de delitos cometidos por agentes do Estado, mas sobretudo nas mudanças estruturais. A sonhada polícia única de caráter civil está longe da agenda política do governo federal e do Congresso.
A proposta enviada pelo governador Mário Covas ao presidente Fernando Henrique Cardoso, que unifica as funções de polícia (judiciária, investigativa, preventiva e ostensiva), não foi nem sequer discutida profundamente na comissão criada no Ministério da Justiça para prioritariamente avaliá-la.
O que propôs o governo federal foi enviar ao Congresso a desconstitucionalização do artigo 144, passando para os Estados a responsabilidade de reestruturar as polícias estaduais. Nos Estados do Norte e Nordeste do país, as Polícias Militares têm efetivos quatro ou cinco vezes maiores que os da Polícia Civil; no Sudeste, no mínimo, o dobro.
Sabedores do lobby das Polícias Militares, qual polícia as Assembléias Legislativas iriam priorizar? É bem possível que as Polícias Civis dos Estados percam funções e as Polícias Militares, além do policiamento ostensivo e preventivo, façam também polícia judiciária e investigativa, como já acontece em determinadas localidades de vários Estados. Se a desconstitucionalização das polícias passar no Congresso, as mudanças podem se dar na contramão das exigências da sociedade civil e da perspectiva da comunidade internacional.
O que o governo federal, os estaduais e o Congresso têm que definir é se querem ou não quebrar uma dicotomia estrutural existente nas Polícias Militares: uma função de natureza civil e uma estrutura de natureza militar.
Essa dicotomia da organização trouxe, entre outros problemas, uma Polícia Militar que não demonstra nas funções de natureza civil o mesmo vigor na disciplina e na hierarquia observado "interna corporis". Soma-se a isso a criação de uma Justiça especial para julgar os crimes cometidos por policiais militares, não só os "propriamente militares" como também aqueles cometidos na função de natureza civil.
Os regulamentos disciplinares das PMs reproduzem o do Exército brasileiro. As transgressões disciplinares previstas (o regulamento da PM de São Paulo é de 1943, quando existia só a Força Pública, uma espécie de "exército regional paulista" que não tinha função de polícia preventiva e ostensiva), na sua maioria, dizem respeito a problemas de caserna, tais como: a) necessidade de autorização para casar-se; b) vagar ou passear pelas ruas após as 22h, sem permissão escrita da autoridade competente; c) deixar, quando estiver sentado, de oferecer seu lugar a um superior em qualquer situação etc.
Muitas das transgressões têm como punição prisões administrativas, que vão de 5 a 30 dias de detenção e que, muitas vezes, podem caracterizar abuso de autoridade -além de ser "inconstitucionais", na medida em que a exceção prevista na Constituição federal diz "respeito às Forças Armadas" e não às polícias estaduais, com funções civis e regulamentos disciplinares determinados por decreto.
Os efeitos dessa dicotomia atingem de forma perversa a população. Punidos por questões internas a partir de regulamentos arcaicos, que se preocupam mais com o policial quando ele está no quartel do que quando está na rua, os policiais "descontam" na população a pressão sofrida.
É verdade que medidas como o Proar (Programa de Acompanhamento de Operações de Alto Risco), implantado em São Paulo, diminuem em muito a violência policial, mas 80% dos casos de homicídio registrados na Ouvidoria da Polícia envolvem policiais militares.
Rever os regulamentos disciplinares, tratando como transgressões graves aquelas cometidas quando o policial estiver exercendo sua função civil (com punição de suspensão, e não prisões administrativas), além de elevar a auto-estima dos policiais, poderá contribuir para diminuir a violência.
Não foi por outro motivo que o recente Plano Estadual de Direitos Humanos destacou que "rever os regulamentos disciplinares das polícias, notadamente o da Polícia Militar, compatibilizando-os à ordem constitucional vigente" é uma prioridade.
Se os crimes cometidos por policiais militares em função de polícia não têm natureza militar, as transgressões disciplinares tampouco. O fim das Justiças Militares e a revisão dos regulamentos disciplinares são medidas que visam quebrar uma dicotomia estrutural herdada dos períodos autoritários e reforçam o princípio de que disciplina e hierarquia não são pressupostos somente da organização militar, mas constituem a base das instituições policiais sólidas e democráticas.
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