Fundamentos do tiro: Acionamento
Quinto artigo de um total de seis da série Fundamentos do Tiro de autoria do medalhista pan-americano e técnico de Tiro Esportivo Silvio Aguiar.
Acionamento
Já devo ter dito em artigos anteriores, que o processo do disparo segue a “lei da corrente”, ou seja, o sucesso do todo depende igualmente da qualidade de cada elemento (posição, empunhadura, respiração, visada, acionamento e acompanhamento). Um elemento executado de forma errada (um elo fraco) compromete o resultado final do processo (a corrente), mesmo que todos os outros tenham sido executados de forma correta.
Tenho observado que muitos técnicos e atiradores elegem o acionamento como o grande vilão do nosso esporte, responsabilizando-o pela maioria dos disparos incorretos.
Pessoalmente, penso que o problema não está na dificuldade de execução do fundamento em si, mas sim na formação equivocada (deformação) do atirador, ou seja, na fixação de hábitos incorretos na fase inicial de treinamento.
Em contra partida, também é correto afirmar que os demais fundamentos, quando aprendidos de forma errada, são de tratamento posterior mais fácil do que o acionamento. Mudar hábitos desenvolvidos incorretamente de posição, empunhadura, respiração ou de visada, ou mesmo a rotina seqüencial do processo como um todo, é muito mais fácil do que reparar erros no acionamento.
Para o atleta iniciante, a sustentação da arma com a mão livre é naturalmente um problema. Por isso, o aprendizado inicial do acionamento é feito sempre com a arma apoiada, permitindo-lhe manter sua estabilidade enquanto aprende e treina de forma “confiante” o movimento de flexão do dedo indicador.
Esse procedimento é decisivo para o sucesso do desenvolvimento e fixação do hábito correto do acionamento.
Mais uma vez, ressalto a importância do programa de treinamento físico do atleta (geral e especial), que tem como objetivo proporcionar o aumento da estabilidade da posição e a redução da amplitude do arco de movimento, provendo o condicionamento necessário para execução do acionamento com a mão livre, com a mesma fluidez e confiança, conseguida com a arma apoiada.
A passagem do apoiado para mão livre deve ser feita de forma gradual. É muito importante que durante a transição, o atleta se preocupe em manter o acionamento ininterrupto, sincronizado com os demais elementos do processo, e principalmente, aprenda a “aceitar” o seu arco de movimento (movimento relativo da figura alça/massa) que naturalmente será maior do que quando disparava com a arma apoiada. No acionamento correto, a ação de flexão uma vez iniciada não é mais interrompida, levando-se em conta apenas o tempo ideal de acionamento para cada modalidade.
O aprendizado com a arma apoiada, mantido até que o atirador alcance o arco de movimento desejado, impede a contaminação do hábito do acionamento pelas duas “impurezas”, que são realmente as grandes vilãs do nosso esporte: o retardo do início do acionamento e a flexão “indecisa” (fracionada) do dedo indicador. Ambas “impurezas” estão diretamente ligadas à vinculação equivocada da ação de flexão ao alinhamento da figura alça/massa com o alvo, ou seja, à formação da figura perfeita de visada.
Seguindo a nossa metodologia de aprendizado, montaremos primeiro o modelo mental do acionamento correto, para posteriormente aprendê-lo e treiná-lo.
Parto do princípio que todos já sabem o que é peso do gatilho, conhecem e entendem o funcionamento do mecanismo de ação da sua arma, ou seja, as peças que trabalham para liberar o percussor quando a tecla do gatilho é comprimida.
Nossa meta, o acionamento correto, só será atingida quando a força empregada à tecla do gatilho liberar o percussor sem provocar qualquer alteração no movimento natural do conjunto arma/atirador, ou seja, sem alterar o alinhamento relativo desse conjunto com o alvo.
O percussor é liberado quando essa força atinge uma intensidade igual ao “peso” do gatilho. Qualquer força de intensidade acima do “peso” do gatilho acarretará um excedente de “energia”, que contribuirá para o desequilíbrio do conjunto arma/atirador. Dessa idéia extraímos a primeira premissa do modelo mental: a intensidade da força de flexão deve ser a necessária para vencer o peso do gatilho e liberar o percussor.
Pelas leis da mecânica, sabemos que para um corpo permanecer em equilíbrio estático, a cada força nele aplicada deverá haver uma força contrária, atuando no mesmo eixo e de igual intensidade. Assim, para manter a arma em equilíbrio estático (mesmo que relativo) é necessário que a força exercida pelo dedo indicador seja aplicada num eixo paralelo ao eixo do cano da arma, preferencialmente no mesmo plano vertical, eliminando assim a ocorrência de componentes laterais que provocariam o desalinho do conjunto arma/atirador com o alvo. Surge então a segunda premissa: a força de acionamento deve ser constantemente aplicada num eixo paralelo ao eixo do cano.
Porém, de nada adiantará flexionar corretamente o dedo indicador, se essa ação não for feita de forma independente, ou seja, sem produzir (transmitir, influenciar) alterações na força que os demais dedos fazem no cabo da arma para empunhá-la. Chegamos então à terceira premissa: durante o acionamento só o dedo indicador aumenta a força; os demais empunham a arma com força constante.
Cabe lembrar, que quando o fundamento posição é desenvolvido de forma correta (pelo exercício de posição interior), os demais músculos do corpo também não sofrem a influência do acionamento e nem “colaboram” em momento algum com essa ação. É muito comum ver atiradores que disparam até com o ombro, produzindo movimentos espasmódicos quando, por qualquer motivo, o tiro não ocorre dentro do tempo ideal.
Para completar o nosso modelo mental, faz-se necessário lembrar que o acionamento é executado de forma sincronizada com os demais elementos, ocorrendo tudo dentro do tempo ideal. Esse tempo é limitado pelo período que o SNC, sem uma nova provisão de oxigênio, se mantém “funcionando” de forma adequada à atividade do disparo. Como falei anteriormente, esse tempo depende da modalidade praticada, mas nunca deve ultrapassar o tempo de sete segundos. Após esse período, perdemos a acuidade visual, a capacidade de concentração e de atenção, com a conseqüente alteração no controle da estabilidade do corpo, ocorrendo simultaneamente o aumento do arco de movimento.
Para que isso não ocorra, é necessário que a ação, uma vez iniciada, não seja mais interrompida, ou seja, a força de flexão é incrementada de forma ininterrupta. Chegamos então à quarta premissa, que junto com as demais compõem o nosso modelo mental para o aprendizado do acionamento:
A força de flexão do dedo indicador deve ser aplicada na intensidade necessária a vencer o peso do gatilho, num eixo paralelo ao eixo do cano, de forma ininterrupta e independente da ação dos demais músculos do corpo (só o dedo do gatilho é que mexe), sincronizada com os demais fundamentos do disparo, de forma a liberar o percussor no tempo ideal de disparo para a modalidade.
Uma vez entendido o modelo mental, o atleta pode passar para a fase de visualização da ação. A visualização é muito importante para construir na sua mente a imagem da ação modelo, que será utilizado como gabarito na fase de aprendizado. Durante o exercício de visualização, a repetição constante das premissas pelo técnico, ajuda na construção da imagem correta do modelo mental.
A fase seguinte é a exercitação da ação, inicialmente de forma lenta, criticando a ação e comparando-a constantemente ao gabarito. Nessa fase, e apenas nessa fase, o senso crítico é decisivo para o sucesso do aprendizado. O atleta tem que ser capaz de verificar o quanto a ação executada se aproxima do gabarito, buscando torná-la cada vez mais igual ao seu modelo mental.
É importante frisar que o próprio gabarito sofre evoluções na medida em que o atleta vivencia a ação, principalmente pela melhor compreensão (amadurecimento) das premissas que norteiam o fundamento que está aprendendo.
O exercício utilizado para aprendizagem e treinamento é o mesmo, iniciando sempre com a arma apoiada. Para a formação inicial dos atiradores nos clubes, pode-se inclusive, utilizar carabinas de ar comprimido de baixo custo, que por não permitirem o tiro em seco, podemos usar qualquer tipo de chumbinho, apenas para manter a pressão positiva dentro do cano durante a ação do êmbolo.
O exercício consiste em executar o acionamento com a arma apoiada e de olhos fechados, mantendo toda a atenção e concentração na correta flexão do dedo indicador, de forma a realizá-la conforme o modelo mental.
Durante o exercício, o técnico auxilia repetindo verbalmente as premissas, enquanto supervisiona visualmente a sua execução. Nas armas que permitem o tiro em seco (sem munição), a informação mais valiosa para o técnico é a manutenção do padrão de movimento da boca do cano (arco de movimento) durante todo o processo de acionamento.
Para que o atirador tenha uma referência do padrão de qualidade da ação executada, utiliza-se o mesmo alvo já preparado para o exercício de posição interior; aquele com um círculo representando a zona de visada.
Antes de fechar os olhos, o atirador monta a figura da alça/massa dentro do círculo. Executando o acionamento de forma correta, ao abri-los, encontrará a figura alinhada e dentro do círculo. Esse alvo de treino é usado tanto na fase apoiada como na fase em que a arma é sustentada com a mão livre.
A aprendizagem e o treinamento com os olhos fechados possibilitam a formação do hábito de acionar, sem vinculá-lo à imagem perfeita da figura de visada (alça+massa+alvo), que como já foi dito, é um requisito desnecessário e utópico.
É muito comum encontrarmos atiradores que durante a execução do processo do disparo, se "preocupam em acionar de forma correta", ou seja, treinam acionamento no momento errado e de forma errada. O problema se agrava quando isso ocorre nos exercícios de verificação (testes e competições).
Durante a execução do processo como um todo, o acionamento correto é realizado de forma inconsciente, ou seja, a ação é executada pelo cérebro sem nenhuma análise crítica consciente. A simples transferência da atenção para o acionamento, durante o processo do disparo, interrompe a execução correta da ação, prejudicando a fluidez do processo como um todo.
Portanto, treinar acionamento não é atirar, assim como atirar não é treinar. O atleta só deve executar o processo completo, depois de aprender e treinar isoladamente cada fundamento, fortificando igualmente todos os elos da corrente.
Lembrando os ensinamentos do Mestre Silvino: o tiro deve surpreender o atirador. No Tiro Certo, você tem a sensação de que “alguém atirou”. Sem dúvida foi você, mas sempre de forma inconsciente.
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