No que tange ao aspecto doutrinário, o conteúdo referente ao tema da DiscricionariedadeDiscricionariedade, principalmente com relação aos limites a ela inerentes e o controle jurisdicional a que a mesma é passível. na Administração nunca se posicionou de maneira precisa no Direito pátrio. Por isto, este trabalho se propõe a analisar como é vista a
Partiremos da análise do conceito de Discricionariedade dentro do âmbito da Administração Pública, passando por sua evolução histórica, para depois analisarmos as espécies de atos administrativos, notadamente aqueles praticados no exercício de prerrogativas discricionárias.
Em seguida delinearemos uma breve reflexão sobre a indagação: "Discricionariedade é poder ou prerrogativa?". Outrossim, teceremos breves considerações, para posteriormente, efetuarmos um exame crítico do tema.
Neste meio termo, iremos perquirir sobre os limites da Discricionariedade na lei, verificando a maneira pela qual se aplicam os princípios da legalidade e da juridicidade. Depois, veremos como deve ser feito o controle jurisdicional dos atos administrativos mais conhecidos por "discricionários".
Finalmente, tentaremos demonstrar qual a melhor compreensão que devemos ter sobre o instituto da Discricionariedade dentro da atividade jurídico-estatal, apontando soluções para os problemas referentes ao assunto, o qual carece de uma meditação mais qualitativa e aprofundada.
1 - Introdução
Neste trabalho trataremos de um tema que, além ser de bastante interessante do ponto de vista jurídico, muito mais o é dentro de uma perspectiva social, pois a falta de aprofundamento qualitativo sobre o assunto é demonstrada na maneira como se aplica esse instituto da Ciência Jurídica.
Pretendemos responder algumas indagações no desenvolvimento do presente estudo, tais como: a Discricionariedade é Poder ou Prerrogativa conferida pela norma jurídica ao administrador público?; Quais os limites existentes à Discricionariedade?; Que papel desempenha o Judiciário no controle dos atos discricionários?
Com efeito, antes de adentrarmos ao cerne do trabalho faz-se necessário perquirir aspectos históricos, jurídicos, principiológicos e, principalmente, doutrinários, enfatizando, sobretudo, o caráter teórico da análise aqui feita. Todavia, não pretenderemos esgotar tudo aquilo que diz respeito ao assunto, pois será um estudo propedêutico, tendo em vista ser o mesmo muito vasto.
Assim sendo, dentro da limitação que sabemos ser sujeitos, buscaremos dar respostas satisfatórias às perguntas aqui formuladas, fundamentando os nossos argumentos em aspectos objetivos, e, acima de tudo, críticos.
Inicialmente delinearemos uma breve noção conceitual do que seria a Discricionariedade na Administração, depois nos referiremos às espécies de atos administrativos, bem como faremos uma rápida evolução histórica sobre o objeto do estudo. Em seguida, esboçaremos uma análise crítica sobre os limites à Discricionariedade existentes na Lei, enfatizando os princípios da Legalidade e da Juridicidade. Após, sem sermos redundantes, traçaremos, num tópico específico, considerações acerca do controle jurisdicional dos atos administrativos discricionários, sendo estas indispensáveis para a nossa apreciação crítica.
Por fim, e sem mais delongas, manifestaremos nossa posição em relação ao importante tema, buscando apontar alternativas práticas que servirão para orientar como deverão a sociedade e as funções estatais se posicionar, após obterem a correta e definitiva noção sobre a Discricionariedade no exercício da Administração Pública.
2 – O conceito de Discricionariedade
Discricionariedade é à margem de "liberdade" que remanesce ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos, cabíveis perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente uma solução unívoca para a situação vertente (1).
A noção de Discricionariedade, ou "atribuição discricionária" envolve um aspecto liberal, de autonomia em face de uma determinada autoridade. Logo, atuar discricionariamente significa proceder no exercício de uma atividade, sob aspectos racionais e proporcionais, dentro do âmbito estabelecido pelo ordenamento jurídico, optando pelo melhor procedimento que irá satisfazer o bem comum, diante de conceitos ambíguos trazidos pela norma posta.
Neste diapasão, Discricionariedade implica uma escolha entre muitas possíveis, em atendimento ao interesse público próprio de sua atribuição e competência, com uma função finalística perante o fato real. Seria, pois, a determinação do sentido de uma noção deixada na norma. A opção da melhor atitude a ser tomada pela autoridade dentre inúmeras, deve ser entendida diante de um aspecto de liberdade sempre relativa, limitada e contrastável pelo Judiciário, caso este venha a ser acionado.
3 . Breve Evolução Histórica do Conceito de Discricionariedade
A noção de Discricionariedade no ordenamento jurídico traz na história marcos recentes, principalmente a partir dos séculos XIX e XX. Analisaremos brevemente como se deu esta evolução em países europeus, até a inserção de tal conceito no Brasil.
Na Alemanha, em meados do século XIX, a Administração era tida como poder do Estado, livre, discricionário, nos limites da norma. Esta função estatal inicialmente agia mediante lei prévia, passando paulatinamente a vincular-se a normas específicas, e ao lado disso, percebeu-se a necessidade de se reconhecer à existência de uma atuação discricionária, deixando-se às autoridades a prerrogativa de escolher os pormenores, as condições de sua atividade.
Na França, com a Revolução de 1789, e, posteriormente com a Constituição de 1791, a supremacia da norma jurídica surgiu como expressão da vontade geral do Estado, numa busca pelo controle dos atos arbitrários por parte daqueles que administravam a nação. Antes disto, porém, a força da Discricionariedade na Administração prevalecia ante o controle jurisdicional, com atos discricionários sendo praticados por autoridades incompetentes para tal e, ainda, indo estes de encontro à forma preceituada.
Por último, a Itália recebeu fortes influências das instituições administrativas francesas, e, mesmo após a reforma administrativa de 1865, o Poder Judiciário não invadia o campo da atividade própria da administração, não reduzindo o seu poder discricionário, atuando esta independentemente de uma fiscalização de outro poder.
Nesse momento, a função social do Estado, passa a ter cada vez mais destaque, assumindo o direito público grande importância no atuar livre da Administração. Uma segunda reforma administrativa ocorreu em 1899, trazendo com ela, maior controle por parte da legislação e do Judiciário quanto aos atos discricionários. Todavia, o poder discricionário continuou necessário diante da impossibilidade de a norma prever e regular tudo. Daí, o Judiciário estendeu seu âmbito de controle sem prejudicar as atividades da Administração, e isso se fazia necessário, na medida em que a norma jurídica não fixava precisamente um campo de atuação. Por fim, a idéia predominante sobre o tema no nosso país é a de que Discricionariedade traduz-se em Poder atribuído pelo Direito ao agente público.
4 . Ato Vinculado e Ato Discricionário
Conforme leciona Meirelles: Ato Administrativo é toda manifestação unilateral de vontade da Administração Pública que, agindo nessa qualidade, tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar, extinguir e declarar direitos, ou impor obrigações aos administrados ou a si própria (2).
Sem adentrarmos na análise de seus elementos constitutivos, verificamos que dentro da esfera dos atos administrativos, a doutrina, dentre outras classificações, agrupa-os em atos "vinculados" e "discricionários". Os primeiros possuem uma prévia tipificação legal. Já nos demais discricionários, a Administração utilizando-se de certa liberdade atribuída pela norma, decide sobre a conveniência ou oportunidade de sua prática.
Nos atos vinculados, o legislador ao criar a norma antecipa qual a possível conduta a ser posta em exercício pelo administrador, restringindo ao máximo, portanto, a extensão de liberdade no atuar da Administração.
De outro lado, nos atos praticados no desempenho das prerrogativas discricionárias pelo administrador público, a lei põe à disposição deste uma margem de liberdade, a fim de decidir qual a melhor forma de se atingir o interesse coletivo por ela previsto diante de um fato determinado.
Neste diapasão, o ato vinculado encontra-se intimamente ligado aos preceitos de uma norma, ou seja, esta determina, desde seu nascedouro, a situação fática e o conteúdo do mesmo, não permitindo à Administração Pública diversa conduta.
No tocante à outra modalidade de atos administrativos, não podemos vislumbrar propriamente um ato discricionário, mas discrição na sua execução. Devemos nos lembrar que este tipo de ato pressupõe legalmente tanto uma finalidade, qual seja, um interesse público, como competência ou atribuição de algum agente público no seu manuseio. Dentro destes dois aspectos temos, na verdade, um ato vinculado, porém de natureza discricionária própria, ou seja, vinculado quanto à finalidade e à competência, mas discricionário quanto o momento de sua prática.
Isto significa que, ao praticar um ato discricionário, o juízo de conveniência e oportunidade do mesmo será feito quanto ao momento de sua prática, seu conteúdo, forma, motivo e finalidade. O grau de Discricionariedade vai variar de acordo com a existência desses elementos legalmente existentes.
A própria norma jurídica é quem indica, através de conceitos fluidos e muitas vezes indeterminados, a existência ou não da margem de liberdade no atuar da Administração. Será a partir da análise que se fará desses conceitos, que se visualizará uma faculdade ou obrigação de agir por parte daquele a quem é atribuída a competência para tal.
No fenômeno da vinculação a vontade da lei só se satisfaz ao revelar claramente se, quando e como deverá a autoridade agir. Por outro lado, aquilo que é de natureza discricionária, o é exatamente por falta de exatidão nos conceitos que determinam o seu modo de se exteriorizar.
Neste plano, o comportamento administrativo discricionário não possui uma situação "pré-vista". Todavia, quando o fato é prenunciado, os conceitos que o delimitam são volúveis, sem objetividade. É exatamente aí que entra em cena o desprendimento do agente público, ao proferir um juízo de valor sobre o que é oportuno e conveniente no caso concreto. Daí o mérito do ato administrativo discricionário: o ato é bom ou ruim, atende ou não o interesse público? Só quem irá responder este questionamento será a autoridade pública, sem esquecer claro, os princípios da moralidade, razoabilidade e eficiência, todos previstos na Constituição da República (art. 37, caput).
Ocorre que, o fato de haver uma norma atribuindo certa liberdade na prática de determinado ato, não o caracteriza como sendo necessariamente um ato discricionário. É preciso que se analise caso a caso. Assim sendo, essa liberdade deve ser vista como limitada até certo ponto, uma vez que, o uso dela é atribuído pela norma para ser realizado de forma prática, racional, proporcional e, antes de tudo, moral, pois o objetivo maior é atingir o interesse público.
Contudo, a existência tanto de atos administrativos vinculados quanto daqueles praticados no exercício de atribuições discricionárias, tem uma razão de ser, qual seja, o meio de se atingir o interesse de vários membros do corpo social. Neste sentido, a Discricionariedade de certos atos, concedida pela norma positiva aos administradores públicos, não deve ser utilizada de forma arbitrária, sem limites, nem controle.
É exatamente aí que se encontra a importância da atividade judiciária quando da invalidação de atos administrativos viciados ou utilizados com abuso de poder. Podemos assim dizer que, ato vinculado é reflexo de respeito ao princípio da legalidade, e, ato praticado no exercício de atribuições discricionárias, quando bem utilizado, é instrumento para a construção de um Estado Democrático de Direito.
5 . Discricionariedade: Poder ou Prerrogativa?
5.1 Considerações Iniciais:
A idéia que se tem do termo em análise, não é muito bem delineada pela maioria dos doutrinadores, aplicadores e exegetas do Direito.
O que se prega atualmente é a idéia de que o ordenamento jurídico confere Poderes ao administrador público para agir com Discricionariedade diante de um determinado caso cotidiano. Esta forma de atuar se dá porque a norma prevê conceitos confusos, indeterminados, dando margem à autoridade competente para simplesmente decidir, de acordo com sua livre vontade, entre alternativas múltiplas, a que melhor irá atender ao interesse público.
5.2 Análise Crítica:
Primeiramente, deter Poder, significa dispor de força ou autoridade para praticar, decidir, algo idealizado. Desde já, não vemos a Discricionariedade administrativa como uma manifestação de Poder por parte do ente representante da Administração, até porque não vivemos num Estado sob regime autocrático.
Ao delinearmos o alcance do significado do termo em questão, devemos proceder de acordo com a noção de faculdade atribuída pela norma jurídica, ou seja, um privilégio concedido por ela a alguém. Ter a prerrogativa de discrição é, acima de tudo, ter capacidade de discernimento e sensatez.
O atuar do administrador com certa margem de liberdade, só existirá se a própria regra de Direito assim o conferir, ou seja, a prerrogativa discricionária é, necessariamente, prevista pela lei, ou pela Constituição vigente. Do contrário, não haverá Discricionariedade na Administração Pública. Isto tudo se dá porque a atividade administrativa deve se basear, fatalmente, na lei.
É impossível que a regra legal traga em seu cerne a previsão de todos os possíveis fatos e problemas pelos quais poderão passar os administrados. Leis específicas poderiam causar conseqüências danosas aos membros de uma sociedade, pois estariam em jogo as garantias individuais previstas pela Carta Maior do Estado. Portanto, na prática, ocorrem situações em que a norma jurídica deixa espaços para que se decida a melhor alternativa diante do caso concreto, ou seja, ela concede à autoridade pública a possibilidade de construir um juízo de valor diante do caso concreto, porém limitado pelo alcance da mesma.
Neste ínterim, importante é que o caráter abstrato da norma jurídico-positiva seja realmente utilizado, a partir do momento em que os conceitos fluidos sejam nela empregados, a fim de não beneficiar pequenos grupos de indivíduos. Isto, portanto, reflete exatamente o caráter de prerrogativa e não de poder conferido pelas leis e pela própria Constituição ao gestor público para que este atue em busca da eficiência dos serviços públicos. Trata-se de um poder-dever conferido explicita ou implicitamente pela norma a quem tem competência para manuseá-lo através de atos administrativos.
O legislador no exercício de suas funções, ao construir uma norma, traduz um determinado princípio. Neste jaez, ele sabe que, quem irá administrar, executar, estabelecer um critério de como por em prática os preceitos estabelecidos nela será uma pessoa que atuará razoavelmente, sob um estado de prudência, ponderação, probidade, e que, acima de tudo, irá respeitar a Legalidade.
O preceito estabelecido na regra jurídica que prevê a execução de um determinado ato administrativo praticado no exercício das prerrogativas discricionárias confere uma certa margem de liberdade ao talante do gestor dos negócios públicos, pois, presume-se que é este quem mantém contato direito com os problemas sociais, tomando as decisões mais corretas e adequadas ao caso concreto.
Portanto, o atuar deste não deve encontrar-se fundado em aspectos arbitrários, tão pouco sem controle. Pelo contrário, ao agir diante de um caso concreto, para os quais a norma prescreveu conceitos obscuros, não-objetivos, o administrador tem a obrigação de respeitar um dos princípios norteadores da construção do Estado Democrático de Direito, qual seja, o Princípio da Separação das Funções Estatais.
Como salientam Canotilho e Moreira:
um sistema de governo composto por uma pluralidade de órgãos requer necessariamente que o relacionamento entre os vários centros do poder seja pautado por normas de lealdade constitucional (Verfassungstreue, na terminologia alemã). A lealdade institucional compreende duas vertentes, uma positiva, outra negativa. A primeira consiste em que os diversos órgãos do poder devem cooperar na medida necessária para realizar os objetivos constitucionais e para permitir o funcionamento do sistema com o mínimo de atritos possíveis. A segunda determina que os titulares dos órgãos do poder devem respeitar-se mutuamente e renunciar a prática de guerrilha institucional, de abuso de poder, de retaliação gratuita ou de desconsideração grosseira. Na verdade, nenhuma cooperação constitucional será possível, sem uma deontologia política, fundada no respeito das pessoas e das instituições e num apurado sentido da responsabilidade de Estado. (statesmanship)". (3)
A essência da atividade administrativa é a realização de um múnus público por parte de quem a desempenha. Portanto, não é dado à autoridade inquinar as proposições que alicerçam a harmonia entre as Funções de Estado, utilizando-se das prerrogativas a ela atribuídas pela norma jurídica, de forma desvirtuada, indo de encontro ao interesse da atividade pública, ou seja, dizendo que pode agir com "Poder" que lhe confere o ordenamento jurídico. Assim, o gestor público deverá proceder de acordo com os parâmetros da lei, sem ultrapassar, inescrupulosamente, as margens de competência conferidas por tal preceito jurídico.
É preciso salientar que a idéia de discrição não se encontra no ato, nem muito menos é uma qualidade dele. Assim, errado é pensar que discricionário é o ato. Porém, nele ela se revela.
Ao estabelecer critérios de governabilidade, a Constituição da República indicou os meios através dos quais a autoridade pública deveria guiar os caminhos de seu atuar. Como sabemos, o ideal de moralidade, conseqüência e reflexo do Princípio da Legalidade, tão esquecido e desprezado em nosso meio social, parece estar cada vez mais distante das sórdidas consciências da maioria de nossos gestores públicos, voltados apenas a interesses particulares e eminentemente antiéticos. Estes governam pisando e escarrando na Constituição. Pior, dizem que governam de acordo com a lei.
Daí a nossa grande preocupação: a atual concepção de Discricionariedade está totalmente desvirtuada do seu real conteúdo. A norma jurídica não estabelece poderes, mas sim prerrogativas.
Como claramente aduz Celso Antônio Bandeira de Mello:
Tendo em vista os interesses que lhe cumpre proteger, realizar e assegurar, a Administração está adornada de prerrogativas que lhe são conferidas pelo sistema normativo a fim de que sua atuação possa objetivar eficazmente os escopos consagrados como próprios da coletividade. (4)
Esse mesmo doutrinador chama atenção em sua obra monográfica sobre a seguinte questão:
embora seja comum falar-se em ‘ato discricionário’, a expressão deve ser recebida apenas como uma maneira elíptica de dizer ‘ato praticado no exercício de apreciação discricionária em relação a algum ou alguns dos aspectos que o condicionam ou compõem. (5)
Por fim, o que se vê é que os legisladores "lavam suas mãos" ao criar a norma para que o administrador através dela atue, sem se preocuparem como a mesma será aplicada. Sendo assim, as atividades de fiscalização e controle necessárias à continuidade de harmonia entre as Funções de Estado, torna-se mera fantasia, uma vez que até o Judiciário resta impotente para encontrar soluções a lides a ele propostas, porque sua função por natureza é imparcial.
Devemos ter em mente a idéia de que, a presente situação do atuar da Administração Pública em suas mais diversas formas de manifestação, encontra-se desvirtuada de seu real objetivo. Faz-se mister, de uma vez por todas, deixar bem claro que administrar a máquina estatal deve ser uma atividade subordinada à lei, aos seus princípios e limites, e que o abuso de direito deve ser combatido constantemente, começando com a correta criação e aplicação da norma jurídica.
A moralidade administrativa precisa continuar presente nas mais diversas atividades públicas, principalmente no proceder por parte do administrador público no tocante aos atos praticados no exercício de prerrogativas discricionárias conferidas a ele pela norma jurídica.
Não podemos permitir que princípios constitucionais como o da Legalidade e Moralidade se apresentem apenas como utopia, até porque, só é possível a norma ser superior, se houver quem a obedeça, neste caso, a autoridade pública.
5.2.1 Limites à discricionariedade na lei: o princípio da legalidade e o princípio da juridicidade.
Ao nos referirmos aos limites à atividade discricionária da Administração, precisamos ter em mente que a autoridade, no exercício de suas funções deve, necessariamente, atuar de acordo não só com a norma jurídica posta, mas com o ordenamento jurídico como um todo. Por isso, a Discricionariedade deve ser, em qualquer ocasião, relativa.
O já citado, Celso Antônio Bandeira de Mello preleciona que:
(...) não há como conceber nem como apreender racionalmente a noção de Discricionariedade sem remissão lógica à existência de limites a ela, que defluem da lei e do sistema legal como um todo – salvante a hipótese de reduzi-la a mero arbítrio, negador de todos os postulados do Estado de Direito e do sistema positivo brasileiro (...). (6)
Com efeito, os princípios norteadores do regime jurídico administrativo estabelecem limites à atividade da administração pública, a qual utiliza-se de prerrogativas discricionárias na edição de determinados atos de sua competência estabelecida por lei. Mister lembrar que, alguns destes princípios são antes de tudo constitucionais e regem toda a atividade legislativa, bem como a administrativa.
Na verdade, o exercício da atividade discricionária, previamente estabelecida pela norma jurídica, está circunscrita por vários limites. Estes, quando não observados, conduzem à arbitrariedade.
Através da margem conferida pelo Direito ao administrador, no que tange à Discricionariedade, o mesmo está vinculado aos ditames estritamente legais. Além disto, o alcance da liberdade conferido pela norma, relaciona-se apenas com os pontos específicos estabelecidos por ela própria. Importante que o exercício dessa liberdade seja praticado na dimensão e no aspecto caracterizado previamente pela regra de direito.
Nesse mesmo norte, a atividade discricionária deve buscar um único fim, qual seja, o interesse público, mesmo que os conceitos existentes na norma sejam imprecisos, vagos. Todavia, ainda que na presença destes, tal atividade jamais deverá desvirtuar-se da essência contida na intenção dos mesmos, ou seja, importante que ela seja sempre fulcrada em princípios da maior relevância para o atuar da Administração, como eficiência, moralidade, razoabilidade, publicidade, legalidade, etc.
O Princípio da Legalidade, mola mestra de um Estado Democrático de Direito, serve de alicerce para que certos atos administrativos não extrapolem as fronteiras do razoável, ou melhor, não sejam praticados sem nenhuma restrição. Portanto, acompanha esse raciocínio o fato de que todo ato administrativo editado no exercício de prerrogativas discricionárias encontra-se, em todo caso, adstrito pela vinculação. Logo, o administrador público tem seus atos sempre vinculados aos mais diversos princípios limitadores de sua atividade discricionária.
A liberdade da atuação discricionária ainda pode ser considerada restritiva, na medida em que a norma atribui ao agente público a faculdade de decidir qual a melhor alternativa para solucionar dada situação, porém o próprio caso concreto poderá não possibilitar essa escolha. Ou seja, mesmo a norma atribuindo certa margem de Discricionariedade à autoridade pública, possivelmente nenhuma conduta irá atingir a finalidade contida na lei. Assim sendo, é possível que exista um determinado comportamento discricionário no plano da norma, todavia, haverá casos em que tal conduta não poderá ser empregada, sob pena de burla ao princípio da segurança jurídica.
Isto, portanto, denota a seguinte situação: ao conceder uma prerrogativa ao administrador para que este busque soluções para determinados fatos, a norma jurídica não "libera" aquele para escolhê-las indiscriminadamente, quer dizer, qualquer solução para qualquer caso. O que o agente público deve fazer é aplicar o comportamento cabível, sensato e idôneo ao caso a ele apresentado.
O fenômeno da Discricionariedade não deve ser compreendido apenas através da perquirição da lei, mas sim, desta em função do caso concreto. Por conseguinte, o correto conceito deste instituto jurídico deve ser difundido a fim de que, diante de certas ocasiões a autoridade possa bem aplicá-lo, com o intuito de que não ocorram maiores dissabores nem prejuízos para toda uma coletividade de administrados, os quais vivem não só na expectativa, mas, antes de tudo, atentos cada vez mais à forma com que se conduz a coisa pública.
Entendemos que a possibilidade de transposição da fronteira da Discricionariedade situa-se não só na norma jurídica, mas também nos fins estabelecidos pelos princípios constitucionais difusos, sem nos esquecermos dos Princípios Gerais do Direito. Daí a necessidade de ampliação dos limites hodiernamente dados ao princípio da legalidade.
Como afirma Mello Neto: indiscutivelmente o princípio constitucional capital da legalidade deve servir de referencial maior para a Administração Pública. Entrementes, entendemos que muito mais que a mera conformação do atuar da Administração Pública com a norma posta, o dito princípio deve ser visto, a bem da cidadania, como um instrumento de verificação da conformidade do funcionamento da máquina estatal com o Direito (7).
De algum tempo, autores pátrios iniciaram a discussão cientifica objetivando ampliar o espectro de incidência do princípio da legalidade, visando dotá-lo de maior eficácia.
Neste sentido Juarez Freitas defende que:
Assim, a própria noção de controle, excessivamente limitada a juízo de mera conformação às regras, haverá de experimentar dignificação e realce em termos de efetividade, máxime na tarefa de outorgar concretização aos princípios superiores estatuídos na Constituição. Em outras palavras, o critério decisivo para estimar uma adequada atuação controladora reside, justamente, no zelo pela íntegra dos princípios regentes da Administração Pública, sobretudo quando se mostrar justificável a preponderância episódica de um, sem exclusão ou supressão recíproca dos demais.
....
Em tudo, é mister apontar novas perspectivas e cobrar soluções melhores no interior do sistema, o mais axiologicamente aptas a garantir a eficácia conjunta dos princípios e das normas juspublicistas à luz desta subordinação à lei e ao sistema que a transcende em intensidade e extensão. (8).
Corroborando esta idéia, Germana de Oliveira Moraes (9) e Carmem Lúcia Antunes Rocha (10), sustentam que a máquina estatal deve mesmo atuar, antes de tudo, em conformidade com o Direito. Segundo aquela:
Ao ordenar ou regular a atuação administrativa, a legalidade não mais guarda total identidade com o Direito, pois este passa a abranger, além das leis – das regras jurídicas, os princípios gerais de Direito, de modo que a atuação do Poder Executivo deve conformidade não mais apenas com à lei, mas ao Direito, decomposto em regras e princípios jurídicos, com superação do princípio da legalidade pelo princípio da juridicidade.
...
A assunção pelo princípio da legalidade desses novos conteúdos: de legalidade constitucional, ao ordenar e regular o Poder Legislativo, e de juridicidade, ao ordenar e regular o Poder Executivo, repercutirá, diretamente sobre a compreensão teórica da Discricionariedade e a amplitude do controle jurisdicional da atividade administrativa,...
...
A noção de legalidade reduz-se ao seu sentido estrito de conformidade dos atos com as leis, ou seja, com as regras – normas em sentido estrito.
A noção de juridicidade, além de abranger a conformidade dos atos com as regras jurídicas, exige que sua produção (a desses atos) observe – não contrarie – os princípios gerais de Direito previstas explícita ou implicitamente na Constituição (11).
O alcance dado pelos jusadministrativistas acima citados, ao princípio da legalidade faz com que a atividade administrativa estatal sofra uma nova e salutar forma de controle, estendendo as hipóteses de incidência principiológica a todo o Direito, e não mais, como de regra se interpretava, com a norma posta (12).
Incontestavelmente, a Administração dispõe de atribuições para poder fazer valer a sua autoridade. Todavia, o uso dessas, em caso de atos discricionários, deve ser limitado, a fim de que não ocorra abuso ou desvio de poder, ciente de que o fim a que se destina o Direito é a efetivação da justiça.
O simples fato de haver conceitos na norma, sejam estes imprecisos ou não, sem objetividade ou simplesmente fluidos, indica que eles, por si só, possuem limites. Portanto, a aplicação deles deverá estar sempre pautada pela moralidade, razoabilidade, e, sobretudo, pela legalidade.
Como é sabido, a ação administrativa traduz a idéia de função subordinada aos interesses públicos, melhor dizendo, ela encontra um limite insuperável no ordenamento jurídico. Isto ocorre porque a administração pública deve fazer apenas aquilo que o Direito consente, traduzindo o ideal de "poder-dever" da atividade gestora dos interesses difusos e coletivos.
O real significado da expressão "poder-dever" traduz a concepção de que através deste instrumento, a autoridade competente pratica aquele, ou seja, o poder é apenas o meio por meio do qual se deve atingir o interesse de toda uma coletividade, uma vez que é a própria norma que assim estabelece. Já dizia Cirne Lima (13): o fim – e não a vontade – domina as formas de administração.
Sendo assim, sempre que um determinado ato for praticado com certa margem de Discricionariedade, mas não for o mais adequado ao fim previsto na norma jurídica, deverá, mesmo possuindo limites anteriormente previstos, ser controlado pelo Judiciário.
Ademais, como já foi dito, o Judiciário é o Poder/Função que pode "controlar" a legalidade dos atos mais conhecidos como "discricionários", isto porque, a Discricionariedade administrativa assegurada à Administração, dentro dos limites do ordenamento jurídico, deve ser respeitada. Logo, para alguns, o mérito do ato administrativo não pode ser ultrajado pelo órgão jurisdicional, opinião que vemos com reservas. Sobre este assunto, nos deteremos mais adiante.
Todavia, se a autoridade afrontar o princípio constitucional da Legalidade, ou transpor o âmbito de suas prerrogativas discricionárias, possivelmente terá como invalidado o instrumento ensejador de tal abuso. Ocorre que, a condição primordial para a eficácia e validade do ato administrativo é exatamente a adequação aos princípios jurídicos exteriorizados na norma.
Importante frisarmos que o princípio constitucional da Separação das Funções Estatais não será afrontado se o órgão do executivo tiver seus atos, de natureza discricionária, vigiados pelos demais "Poderes" e vice-versa, principalmente no que tange à observância da legalidade. Lembremos, também, que a publicização destes atos administrativos é ponto fundamental para que a Discricionariedade seja corretamente aplicada, limitada e respeitada pelos órgãos de controle.
O que se resguarda nas democracias hodiernas é a inclusão da sociedade no processo moralizador da gestão da coisa pública. Limitar o âmbito de atuação das autoridades públicas é, antes de tudo, fazer valer o direito adquirido. Isto porque, a época de autoritarismo deixou no passado, marcas nas mais diversas nações e sociedades, as quais assistiam impotentes o desrespeito de seus governantes na manipulação imoral e ilegal do desvirtuado conceito atribuído à Discricionariedade dos atos administrativos.
Entendia-se outrora que, o simples fato de a norma atribuir uma margem de liberdade ao administrador para que ele, mediante juízo de oportunidade e conveniência escolhesse a melhor opção aplicável para a satisfação do interesse público, implicava na desnecessidade de motivação daquele ato mais conhecido como "discricionário". Hoje, inobstante opiniões contrárias, a necessidade de motivação dos atos administrativos editados no exercício de prerrogativas discricionárias, se apresenta como mais uma via de limitação da Discricionariedade por parte da Administração, ou seja, como um dever, e não mais como poder.
Essa necessidade se dá porque, nós administrados, cada vez mais conscientes de sua função na sociedade exigimos explicações sobre o por quê, e para que a prática de tal ato, ou seja, quais os benefícios que o mesmo irá trazer-nos. Importante salientar que essa motivação deve ser contemporânea ao ato, para que só assim o mesmo passe a produzir efeitos e, então, possa ser controlado.
A própria Constituição da República, em seu art. 1º, parágrafo único, aduz que "Todo o poder emana do povo que o exerce por meio de seus representantes (...)", traduzindo, assim, a idéia de que a autoridade administrativa não é detentor de poderes arbitrários, nem muito menos proprietário da coisa pública. Por isso seus atos, necessariamente, são limitados.
Ainda nesse mesmo horizonte de idéias, importante que nos reportemos ao inseparável ingrediente de uma séria administração, o Princípio da Moralidade Administrativa, ao qual tantas vezes já nos referimos, e que foi notavelmente elevado à categoria de Princípio Constitucional. Lamentável vermos que ainda seja confundido com outro importante, o Princípio da Legalidade. Porém um antigo brocado já dizia: "non omne quod licet honestum est" (14). Portanto, licitude e probidade são conceitos diferentes e inconfundíveis, apesar de que a aplicação concreta da moralidade se apresenta, em muitos casos, como mera utopia.
A moralidade deve sempre estar na intenção do agente ao utilizar-se de meios que levarão à consecução do bem comum, ou seja, a Administração precisa pautar-se, continuamente, pela ética. Este princípio é mais um dos componentes que delineiam uma das bordas da esfera limitativa da discrição administrativa como uma prerrogativa, jamais como mera tradução de "Poder".
Ser moral é acima de tudo agir com lhaneza para com os administrados. Isso significa que, no momento em que a autoridade encontra-se diante de um caso concreto, passível de Discricionariedade, a escolha dentre várias alternativas jamais deve ser para prejudicar ou agravar a situação de qualquer pessoa, ou seja, é preciso que se proíba todo o arbítrio pessoal do administrador público, pois infelizmente, o que muitas vezes ocorre é o mau uso da Discricionariedade por parte da função Executiva estatal.
5.2.2 Controle jurisdicional dos atos administrativos discricionários
Ab initio, entendemos ser melhor tecermos considerações sobre o mérito do ato administrativo. Isto porque, para alguns se trata de questão das mais tormentosas, no que diz respeito ao controle jurisdicional dos atos da Administração Pública.
Assim, ‘Mérito’ do ato administrativo é o produto de um juízo de valor realizado pela autoridade pública, quanto às vantagens e conseqüências, as quais deverão ser levadas em conta como pressuposto da atividade administrativa. O professor Hely Lopes Meirelles traz o seguinte conceito:
O mérito do ato administrativo consubstancia-se, portanto, na valoração dos motivos e na escolha do objeto do ato, feitas pela Administração incumbida de sua prática, quando autorizada a decidir sobre a conveniência, oportunidade e justiça do ato a realizar. Daí a exata afirmativa de Seabra Fagundes de que ‘o merecimento é aspecto pertinente apenas aos atos administrativos praticados no exercício de competência discricionária’. (15)
Sendo assim, a idéia de mérito envolve a discussão sobre a oportunidade, conveniência, escolha dos motivos, utilidade do ato, finalidade e objetivo psíquico visado pelo administrador. Logo, entram na construção de um ato administrativo todos esses ingredientes da mais alta relevância, sobretudo, quando nos referimos aos atos praticados no exercício de faculdades consideradas discricionárias.
Trocando em miúdos, o mérito está intimamente envolvido com o objeto (causa, conteúdo e adequação) e a vontade (motivo e fim). Desta feita, mediante um caso concreto, o administrador público utilizará todos esses meios para tentar atingir o objetivo do ato, que é solucioná-lo, acolhendo da melhor maneira possível os anseios do maior número de interessados, respeitando assim o princípio da igualdade.
Como vemos, aparentemente, tudo que diz respeito ao ato administrativo "discricionário" envolve apenas competência e interesse da Administração. Daí, indaga-se: pode haver controle jurisdicional de um ato praticado quase que exclusivamente sob o domínio do psíquico do administrador? Melhor: é possível o controle da legalidade do ato administrativo através do exame de seu mérito, ou ele é imune a qualquer fiscalização?
Responderemos a estas capciosas indagações começando por repetir o que já anteriormente dissemos: a administração pública deve fazer apenas o que a lei, e aí entendemos o Direito, permite. Logo, o Direito nunca deve se subordinar ao administrador público, assim como, o mérito do ato administrativo deve se amoldar aos ditames do ordenamento jurídico, pouco importando o que quis a autoridade no seu íntimo, quando da feitura de qualquer ato administrativo praticado com atribuições discricionárias previamente estabelecidas, uma vez que se subentende que aquilo por ele pretendido é o melhor para todos os administrados.
Vários remédios processuais e seus inúmeros legitimados ativos previstos na própria Constituição de 1988 seriam considerados letra-morta, se continuássemos com a idéia de que o mérito do ato administrativo é intangível.
Aí está a importância da atuação imparcial do Poder Judiciário. Este sim deve refletir, quando suscitado, sobre o mérito do ato sempre dentro do prisma da legalidade. É de fundamental importância que esta Função Estatal continue velando pela continuidade da Moralidade Administrativa, a qual, muitas vezes, é vítima da inescrupulosa maneira com que se vê manipulado o mérito de muitos atos.
Tem-se a idéia de que, como a norma jurídica confere a possibilidade à autoridade para utilizar-se de faculdades discricionárias diante de determinados casos, a análise do mérito de determinado ato é livre e totalmente incondicionada a qualquer controle. Isto, como já vimos é mera ilusão.
O simples fato de não existir adequação entre o motivo e o fim do ato, ou ainda, não ser verdadeira a razão do mérito, dá ensejo para que ele seja controlado, pois, legalmente foi editado erroneamente. Infelizmente, esta não é a opinião da doutrina e jurisprudência dominantes, as quais defendem única e exclusivamente o exame para saber se os aspectos formais do ato foram observados ou não.
De outro lado, estas mesmas fontes formais do Direito defendem veementemente o combate ao abuso e desvio de poder. Mas como se poderá evitá-los sem perscrutar o mérito, ou seja, o juízo de oportunidade e conveniência elaborado quando da feitura do ato? Ou melhor, como o Judiciário saberá se os interesses públicos, estabelecidos a nível constitucional, foram verdadeiramente atingidos?
Não pretendemos aqui defender uma radical e incontrolável usurpação de atribuições das funções estatais, pelo contrário, queremos mostrar que pode existir real harmonia entre elas, começando pela forma como as atribuições de cada uma são exercidas sem afrontarem o texto da Lei Maior, que rege todas elas. Logo, não se concebe a idéia de que pode o juiz, substancialmente adentrar a razão meritória do ato, nem tampouco a de que o administrador deverá utilizar-se da discrição para, através do mérito, desvirtuar a finalidade do ato administrativo.
O que na verdade vemos nos dias atuais é que, mesmo o texto constitucional de 1988 tendo inovado em vários conceitos pertinentes ao Direito Público como um todo, ao tema referente ao estudo do mérito do ato administrativo ainda não foi dado o seu valor devido. Isto pode ser constatado através da jurisprudência pátria. Esta continua a entender ser proibido o exame meritório, senão vejamos:
Compete ao Judiciário apreciar a motivação de ato administrativo, no que não for estritamente discricionário (oportunidade e conveniência da medida) e desde que necessário à aferição da própria legalidade do ato. (16)
Pensamos que este entendimento está um pouco ultrapassado, ante a contínua evolução da sociedade atual, principalmente nos temas referentes à democracia. Por outro lado, uma nova corrente de pensamento se consolida cada vez mais com uma idéia mais voltada à realidade. O próprio STJ assim já se posicionou:
o exame da legalidade, além do aspecto formal, compreende também a análise dos fatos levados em conta pelo Executivo. (17)
E ainda:
É lícito ao Poder Judiciário examinar o ato administrativo, sob o aspecto da moralidade e do desvio de poder. Como o princípio inscrito no art. 37, a Constituição Federal cobra da Administração, além de uma conduta legal, comportamento ético. (18).
O Supremo Tribunal Federal, corte excelsa do Judiciário nacional, por sua vez, traz o seguinte aresto:
a legalidade do ato administrativo, cujo controle cabe ao Poder Judiciário, compreende não só a competência para a prática do ato e de suas formalidades extrínsecas, como também os seus requisitos substanciais, os seus motivos, os seus pressupostos de direito e de fato, desde que tais elementos sejam definidos em lei como vinculadores do ato administrativo. (19)
De uns tempos para cá, com uma nova leitura que se fez do Princípio da Legalidade, este passou a ser compreendido não mais apenas no sentido "formal", mas também, e principalmente, numa lógica "material". Isto trouxe conseqüências práticas das mais positivas, pois hoje as pessoas cada vez mais exigem eficiência dos órgãos estatais na defesa de seus direitos, bem como na aplicação da efetiva observância da legalidade dos atos da Administração.
Dentro desta óptica está a vontade de ver os Poderes/Funções sendo controlados(as) reciprocamente, sem a utilização de artifícios para tentar mascarar a realidade. Logo, o exame do mérito do ato administrativo pelo Judiciário, deve ser corolário de uma boa administração, ou seja, trata-se antes de tudo, da observância de um princípio cada vez mais vinculante na atividade da Administração Pública, o Princípio da Moralidade Administrativa. Esta é uma realidade observada nos países de tradição positivista do Direito, como Itália e Alemanha, e que deveria ser uma tendência no Brasil.
A nossa Constituição prevê expressamente que nenhuma lesão ou ameaça de lesão a direito (individual, coletivo, difuso, público ou privado) não deixará de ser passível de apreciação pelo Poder Judiciário. Neste ínterim a Discricionariedade administrativa também está, claramente, sujeita ao controle jurisdicional, mesmo no caso de atos administrativos discricionários em que o mérito venha a afrontar a ilegalidade, a moralidade, a impessoalidade, a eficiência, etc, uma vez que não há imunidade para quem viola o direito.
Dentro deste raciocínio, já se pronunciara o Des. Nery da Silveira, do Tribunal de Justiça de Goiás:
Não há imunidade legal para quem infringe direito. O poder discricionário não está situado além das fronteiras dos princípios legais norteadores de toda iniciativa da administração e sujeita-se à regular apreciação pela autoridade judicante. (20)
Ademais, a motivação do ato administrativo, prevista constitucionalmente, e a exigência desta, faz com que todos integrem o campo da legalidade, pois ninguém iria motivar ato ilegal. Assim, fica patente a necessidade de intervenção do Poder Judiciário com um caráter principalmente preventivo no tocante ao abuso de direito e desvio de poder, dentre outras ilegalidades possivelmente presentes em atos praticados pela Administração no exercício de faculdades discricionárias.
Se assim não for, não se poderá sequer reconhecer a existência de violação ou ameaça de direitos, fragilizando-se ainda mais o preceito contido no art. 37, caput da Constituição Federal. Daí poderão surgir também inúmeras indagações, tais como: Como seria possível o Judiciário anular ato administrativo pelo fato de o mesmo não possuir motivos ou por apresentar desvio de finalidade?
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